Jean-Luois MAUBOIS 2
Antônio F. CARVALHO 1
1 - INTRODUÇÃO
Entre as indústrias de alimentos, a indústria de laticínios é, sem dúvida, a que apresentou maior introdução das tecnologias de membrana, Microfiltração (MF), Ultrafiltração (UF), Nanofiltração (NF) e Osmose Reversa (OR). Inúmeras razões ocasionaram este sucesso, tais como conhecimento profundo das características bioquímicas do leite e dos co-produtos (principalmente soro), dinamismo das equipes de pesquisa, temperatura de processamento, alta poluição ambiental inaceitável, provocada pela descarga de soro de queijo, entre outras. Em vários países, a presença de um equipamento de membrana em uma fábrica de laticínios é atualmente tão comum quanto à presença de uma desnatadeira.
Entre os fatores que justificam a utilização mais intensa das tecnologias de membrana pelas indústrias de laticínios está o efeito negativo produzido pelos tratamentos térmicos convencionais nos derivados lácteos. Tratamentos térmicos como pasteurização, termização ou esterilização em autoclave ou tratamento UHT, comumente utilizados no leite, garantem a segurança dos produtos lácteos e derivados, mas quase sempre promovem alterações irreversíveis dos componentes do leite, alteram as propriedades físico-químicas dos sais de cálcio (equilíbrio de proteínas) e também afetam a qualidade organoléptica do leite fluido e produtos lácteos, bem como a capacidade de fabricação de queijos. Além disso, as células das bactérias mortas permanecem no leite tratado, com suas enzimas potencialmente ativas, que, juntamente com a atividade metabólica desenvolvida pelo crescimento das bactérias termodúricas remanescentes, poderão causar alterações no leite fluido durante o armazenamento, reduzindo sua vida de prateleira comercial.
Neste contexto, surgem os processos de separação por membranas (PSM), ou seja, operações que utilizam membranas no fracionamento de misturas, soluções e suspensões abrangendo espécies de tamanho e natureza química diferentes. Os PSM são amplamente utilizados na indústria de alimentos em aplicações que envolvem desde o tratamento de efluentes até concentração, purificação e fracionamneto de componentes de uma solução(BALDASSO, 2008). Algumas outras aplicações na indústria de alimentos podem ser citadas: concentração de leite, concentração das proteínas do soro, purificação e potabilização da água, clarificação e concentração de suco de frutas, clarificação e desalcoolização de cerveja e vinho, recuperação de efluentes gerados no processamento de alimentos, desmineralização da água para caldeiras, clarificação de soluções entre outros (HABERT et al., PETRUS, 1997)
As proteínas são, sem dúvida, o componente do leite mais preocupante quando se trata de tecnologias de separação por membanas. Com efeito, estas tecnologias abrem perspectivas para tirar proveito da diversidade das proteínas e de suas propriedades únicas em diversos campos tais como funcionalidade técnica (solubilidade, emulsificação, cremosidade e habilidades de formação de espuma, retenção de água, ajuste de viscosidade) e qualidade nutricional (requisitos de aminoácidos e regulação através de seus biopeptídeos, derivados das principais funções fisiológicas dos seres humanos) (MAUBOIS &OLLIVIER, 1997, MAUBOIS 2002).
2.1-Produção de leites líquidos
A membrana de MF oferece uma alternativa interessante aos tratamentos térmicos. Através de uma membrana de MF especialmente projetada, todas as células somáticas e a maior parte da gordura residual e dos microrganismos contaminantes são separadas de um leite desnatado aquecido, sendo concentradas 20 vezes no retentado da MF. Além disso, membranas de microfiltração retêm esporos formadores de bactérias, os quais representam as principais espécies sobreviventes à pasteurização.
Considerando as contaminações do leite em nível de fazenda, geralmente descritas, o leite desnatado microfiltrado em uma membrana com poros de 1,4 µM, conterá menos que 1 UFC/L de bactérias patogênicas (SABOYA & MAUBOIS, 2000), podendo ser considerado tão seguro como o leite pasteurizado. Para a padronização de gordura, o leite desnatado microfiltrado é misturado com uma quantidade de creme de leite aquecido (95 °C/20 s); a mistura é então homogeneizada e assepticamente embalada. O prazo de validade autorizado, para este produto estocado em uma temperatura na faixa de 4 a 6 °C, é de três semanas, apresentando sabor melhorado (não possui gosto de cozido) e boa capacidade de armazenamento (EINO, 1997).
Em algumas plantas, o uso de MF 1,4 µM tem sido estendido como um pré-tratamento na produção de leite UHT, a fim de diminuir a intensidade do tratamento térmico (redução a 140 °C/4s ou menos), tendo como consequência menor sabor de cozido e uma capacidade de armazenamento melhorada, em função da remoção de enzimas termodúricas presentes em bactérias mortas e células somáticas (CARVALHO & MAUBOIS, 2009).
Já o processo de ultrafiltração oferece a possibilidade de ajustar o conteúdo de proteína do leite de consumo, seja pela sua concentração específica ou através da adição do permeado de UF de leite no leite coletado, visando superar as variações naturais na composição do leite, embora essa prática de padronização do leite ainda não seja permitida.
A remoção de células somáticas a partir de leite cru integral é possibilitada por membranas de MF, sendo retidas 93 a 100% das células somáticas no retentado da MF.
Para os leites fermentados tais como iogurtes, o enriquecimento do leite, seja por OR ou NF pode originar produtos considerados melhores em termos de textura e sabor do que aqueles fabricados com leite adicionado de leite em pó (TAMIME & ROBINSON, 1985). Tais resultados são provavelmente originados por uma redução drástica da reação de Maillard sempre iniciada no leite em pó e na ausência de partículas insolúveis, as quais estão mais ou menos presentes, mesmo em pós de alta qualidade. A melhora do sabor específico encontrada em iogurtes feitos a partir de leite concentrado por NF é provavelmente originada pela redução específica de íons monovalentes (Na e Cl), para os quais os consumidores são particularmente sensíveis.
O completo controle da qualidade bacteriológica de leite para produção de queijo pode ser realizado por um pré-tratamento através da MF 1,4 µM, sendo que os queijos feitos a partir de leite desnatado microfiltrado neste tipo de membrana, adicionado de creme pasteurizado são tão seguros, do ponto de vista higiênico, quanto queijos fabricados com leite pasteurizado (SABOYA & MAUBOIS, 2000). Além disso, em virtude do pré-tratamento por MF remover a um nível muito alto os esporos formadores de bactérias tais como Clostridium tyrobutyricum, a adição de nitrato em um nível de 15 g por 100 kg de leite tal como é realizada em alguns países como a Holanda, para evitar estufamento tardio de queijos semiduros, poderia ser eliminada, com consequências positivas para o ambiente, para a qualidade do soro resultante e para a saúde dos consumidores (MEERSOHN, 1989).
O enriquecimento de proteína integral do leite para produção de queijo através de UF é amplamente utilizado em muitos países. O aumento específico de proteínas do leite varia de uma simples padronização até a obtenção de um teor de proteína e de gordura semelhante ao existente na coalhada drenada, produto denominado por Maubois et al. (1969) como um Líquido Pré-Queijo. A MF também pode ser utilizada como uma ferramenta na indústria de queijos para o enriquecimento específico em caseína micelar do leite para produção de queijo (MAUBOIS et al., 2001). Para alcançar êxito na fabricação de queijo por UF ou MF, as propriedades específicas da proteína do leite enriquecido para queijo devem ser bem compreendidas porque determinam fortemente a qualidade do queijo final, bem como os benefícios do uso da tecnologia de membranas.
Atualmente, um número de variedades de queijo é feito industrialmente em todo o mundo, usando UF e MF de acordo com formulações específicas (MISTRY & MAUBOIS, 2004), com recentes evoluções na produção de queijo fresco não curado, no ajuste do flavour e da textura de queijo macio e na melhoria da qualidade dos queijos produzidos a partir de leite em pó.
1 - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil.
2 - Institut National de la Recherche Agronomisque STLO, Rennes, Bretagne, .