As bactérias psicotróficas quando presentes no leite produzem lipases e proteases que degradam os componentes do leite, ocasionando defeitos tecnológicos nos produtos lácteos processados nas indústrias de laticínios.
As indústrias do setor têm mostrado crescente preocupação com a presença de bactérias psicrotróficas no leite, devido aos aspectos antitecnológicos e prejuízos econômicos causados pelas enzimas produzidas por estas bactérias. As bactérias psicrotróficas produzem lipases e proteases durante a refrigeração prolongada do leite, as quais apresentam forte potencial de degradação sobre a caseína e a gordura.
As lipases e proteases bacterianas apresentam elevada resistência térmica, mantendo seu potencial de degradação enzimático mesmo após o leite ser submetido aos tratamentos mais drásticos aplicados pela indústria de produtos lácteos, como o processo Ultra Alta Temperatura (UAT ou UHT).
Por esta razão, considera-se tecnicamente inviável a desativação térmica destas enzimas, uma vez que a temperatura necessária para sua desnaturação provocaria, paralelamente, danos irreparáveis aos componentes do leite.
Apesar de não causarem danos à saúde do consumidor, as enzimas produzidas pelas bactérias psicrotróficas causam diversos defeitos tecnológicos em produtos lácteos, tais como:
- Redução do prazo de validade;
- Diminuição no rendimento industria;
- Alterações no sabor, odor e aparência.
Proteases bacterianas
A ação degradante das proteases liberadas pelas bactérias psicrotróficas é distinta entre as frações proteicas do leite. A κ-caseína é a fração mais susceptível à ação destas enzimas, seguida em menor escala pelas frações α e β-caseína, sendo que as proteínas do soro são mais resistentes.
A ação das proteases, principalmente as produzidas por Pseudomonas, é similar à da quimosina, enzima empregada na fabricação de queijos. Ela atua sobre a κ-caseína, causando a ruptura do enlace Phe105-Met106, provocando a desestabilização e desnaturação das micelas de caseína, levando à formação de dois peptídeos: a para-κ-caseína e o glicomacropeptídeo.
O maior problema causado pelas proteases em produtos lácteos é a coagulação e/ou a “sedimentação” do leite UHT. Estas enzimas degradam a caseína provocando um aumento na viscosidade do leite, podendo causar sua geleificação (também chamada de coagulação doce).
A presença de sedimentos em leite UHT é considerada como uma das maiores preocupações apontadas pelas indústrias, pois reduz o prazo comercial do produto e provoca a rejeição do produto por parte do consumir final.
As proteases apresentam temperatura ótima na faixa dos 20 °C, o que viabiliza sua atividade em leite UHT, que é estocado por longos períodos em temperatura ambiente. A extensão da proteólise também é influenciada pelo teor de gordura presente no leite UHT: a velocidade da proteólise das amostras de leite UHT desnatado é superior àquela de leite integral.
Os recentes escândalos envolvendo a adulteração de leite UHT aumentaram a desconfiança do consumidor com relação à qualidade deste produto. As alterações nas características do leite causadas por enzimas bacterianas são defeitos tecnológicos que podem ser confundidos com atitudes fraudulentas e comprometer a idoneidade da marca.
O problema é que estes defeitos dificilmente são detectados pelo controle de qualidade das empresas, uma vez que a ação destas enzimas é lenta e as alterações aparecem geralmente depois que o produto já está no comércio.
No Brasil, a percepção dos efeitos causados pelas proteases em leite pasteurizado é menor do que no leite UHT, em função do seu curto prazo de validade. Isto por que a acidificação provocada pelas bactérias láticas torna o leite improprio para consumo antes que estas enzimas provoquem alterações perceptíveis. Em países onde o prazo de validade do leite pasteurizado chega a mais de 20 dias as proteases podem causar efeitos deletérios no sabor.
A presença de proteases em leite destinado a fabricação de queijos pode causar uma degradação parcial das β e α-caseínas, liberando peptídeos (entre eles o glicomacropeptídeo) e nitrogênio não proteico no soro, causando uma queda no rendimento nos queijos em até 5%.
Além disso, durante a maturação de queijos macios e semiduros, estas proteases podem liberar peptídeos de baixo peso molecular que causam gosto amargo nestes queijos. No entanto, o efeito das proteases nas características sensoriais de queijos é menos impactante que o das lipases, uma vez que as proteases são solúveis em água e acabam sendo eliminadas com o soro.
Em leite em pó, além de provocar a formação de sabor amargo, as proteases bacterianas podem causar uma redução na solubilidade do produto em água.
Lipases bacterianas
A gordura do leite encontra-se na forma de glóbulos que contém os lipídeos no seu interior, envolvidos por uma membrana lipoproteica. Desta forma, para que as enzimas lipolíticas tenham o aos lipídeos é necessário que haja o rompimento desta membrana, o que pode ocorrer por ação mecânica ou enzimática (fosfolipases e glicosidades).
A lipólise acarreta na formação de sabores desagradáveis em produtos lácteos devido à hidrólise dos triacilglicerídeos do leite. A liberação de ácidos graxos de cadeia curta, como o ácido butírico, ácido caproico e ácido caprílico conferem gosto forte e picante. Já os ácidos graxos de cadeia média, como o ácido cáprico e ácido láurico têm maior participação na formação de sabor de sabão.
A presença de lipases em queijos pode causar a hidrólise da gordura e formação de ácido butírico, que confere gosto de sabão ao produto. O defeito aparece ao longo da maturação e é comum em queijos de maturação prolongada, como Emmental, Gruyère e Parmesão. Pode aparecer também no queijo Prato de maturação mais avançada, fazendo que ele apresente sabor ardido ou saponificado.
As lipases aceleram o processo de rancificação da manteiga, diminuindo assim sua qualidade sensorial e limitando seu prazo de validade. O mesmo problema pode ser detectado em outros derivados lácteos com alto teor de gordura, como o creme de leite.
A qualidade sensorial do leite em pó também é afetada pela presença de lipases na matéria prima. O processo de secagem do leite não diminui a atividade lipolítica no leite em pó e a enzima permanece ativa durante a estocagem do produto, causando a rancificação do produto não desnatado.
Os ácidos graxos liberados pela lipólise podem afetar as bactérias acido láticas utilizadas como fermento na produção de leites fermentados e interferir na curva de acidificação do iogurte, além de conferir gosto desagradável ao produto final.
A legislação vigente no Brasil ainda não regulamenta limites para a contagem de bactérias psicrotróficas em leite cru. No entanto, fica evidente a necessidade das indústrias reforçarem suas ações de controle de qualidade com relação a estas bactérias no leite cru refrigerado como forma de evitar problemas maiores no produto final. Afinal, sem uma matéria-prima de qualidade não é possível produzir um produto de qualidade.
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