No ofício de transformar o leite em queijo, cada etapa do processo é um capítulo vital na narrativa que culmina no produto final que chega às nossas mesas. Da seleção da cultura lática à temperatura de prensagem, cada decisão molda a identidade do queijo. Entre essas etapas cruciais, a lavagem da coalhada atua não como um mero procedimento secundário, mas como uma das intervenções tecnológicas mais precisas e de maior impacto nas características sensoriais e estruturais de uma vasta gama de queijos apreciados globalmente, como Gouda, Edam, Prato e Minas Padrão, entre outros.
A lavagem da coalhada insere-se no fluxo de fabricação em um momento estratégico, após a coagulação do leite pela ação de enzimas ou acidificação, e o corte da massa em grãos de tamanho cuidadosamente escolhido – uma dimensão que já define a textura e a umidade finais. A etapa que se segue, a mexedura e, frequentemente, o cozimento, tem como função primordial a expulsão do soro, um fenômeno conhecido cientificamente como sinérese. É precisamente nesse ponto de ajuste fino da umidade que a lavagem intervém.
Como é realizada a lavagem da coalhada?
O procedimento em si é simples em conceito, mas exige precisão na execução: uma fração calculada do soro é drenada do tanque. Esse soro descartado carrega consigo uma carga considerável de lactose, sais minerais solúveis (como cálcio e fósforo não ligados à caseína) e parte das proteínas do soro que não foram retidas na coalhada.
Em seguida, adiciona-se um volume predeterminado de água potável à massa. Em certos queijos, utiliza-se água fria para provocar um “choque térmico”, que ajuda a esfriar a massa e a desacelerar a acidificação. No entanto, na maioria dos queijos lavados, como Gouda e Prato, a água é aquecida. A adição de água quente não apenas dilui a lactose remanescente, mas também eleva a temperatura da massa, intensificando a sinérese e promovendo um cozimento suave dos grãos.
Esse processo confere maior firmeza aos grãos e contribui para alcançar o teor de umidade desejado. A quantidade de soro removido, o volume e a temperatura da água, bem como o tempo de contato e de mexedura após a adição, são parâmetros cuidadosamente ajustados pelo queijeiro, funcionando como importantes alavancas de controle sobre as características finais do queijo. Em algumas receitas, podem ser realizadas múltiplas lavagens para promover uma remoção ainda mais eficiente da lactose e de outros solutos.
Qual o objetivo da lavagem?
O objetivo por trás dessa manobra tecnológica é a redução controlada da concentração de lactose na massa do queijo. A lactose é o principal alimento das bactérias láticas (BAL), a força motriz da acidificação na maioria dos queijos.
A fermentação da lactose pelas BAL produz ácido lático, que tem múltiplos efeitos na massa:
- auxilia na sinérese;
- influencia a solubilidade do fosfato de cálcio coloidal (essencial para a estrutura);
- afeta a atividade enzimática;
- inibe o crescimento de microrganismos indesejados.
Ao remover e diluir a lactose, a lavagem limita a fermentação lática. Menos lactose para fermentar significa menos ácido lático produzido e, consequentemente, um pH final mais elevado na massa fresca do queijo. Esta diferença de pH, mesmo que sutil, estabelece um caminho bioquímico distinto para o queijo durante a maturação.
Quais as consequências da lavagem?
As consequências dessa modulação da acidificação são profundas e afetam todos os atributos do queijo.
Primeiramente, o sabor é diretamente impactado. A menor concentração de ácido lático confere aos queijos lavados um perfil sensorial mais suave, menos ácido e frequentemente percebido como mais adocicado, uma vez que a acidez não mascara os açúcares residuais ou os compostos de sabor doce formados pela proteólise.
Essa ausência de acidez excessiva permite que outros compostos de sabor, liberados pela quebra das proteínas (em peptídeos e aminoácidos) e das gorduras (em ácidos graxos livres) durante a maturação, contribuam para perfis aromáticos complexos criando notas amanteigadas, de nozes ou frutadas, dependendo do tipo de queijo e da microbiota presente.
A textura é outro atributo dramaticamente influenciado. O pH mais alto na fase de prensagem e salga resulta em uma retenção significativamente maior de fosfato de cálcio coloidal (C) na matriz proteica de caseína. O C atua como pontes de ligação entre as micelas de caseína, conferindo rigidez e estrutura. Em queijos muito ácidos, a alta concentração de ácido lático solubiliza e remove grande parte do C, resultando em uma rede proteica mais compacta, rígida e propensa a quebrar.
Em contraste, o pH mais alto dos queijos lavados preserva mais C, criando uma rede de caseína mais aberta, hidratada e interligada. Essa estrutura confere ao queijo uma textura mais elástica, coesa, macia, suave na boca e com excelente capacidade de fatiamento e derretimento – características distintivas de Gouda, Edam ou Prato. A textura não é estática; ela evolui durante a maturação sob a ação enzimática, e essa evolução é ditada, em parte, pelo pH inicial da massa.
A formação de olhaduras, aquelas "janelas" arredondadas e brilhantes em queijos como Gouda, Edam e alguns tipos suíços (embora nestes últimos, a formação de olhaduras envolva principalmente bactérias propiônicas que fermentam lactato), é diretamente favorecida pela lavagem da coalhada.
A combinação do pH mais elevado e da estrutura elástica da massa cria um ambiente ideal para a atividade de bactérias láticas heterofermentativas, como certas linhagens de Lactococcus lactis biovar diacetylactis e espécies de Leuconostoc. Essas bactérias, além de ácido lático, produzem dióxido de carbono (CO²) a partir da fermentação da lactose residual ou do citrato.
O CO² gasoso, aprisionado na matriz proteica flexível e coesa (cortesia da lavagem!), coalesce e forma as olhaduras durante a maturação. Em uma massa ácida e quebradiça, o gás simplesmente escaparia ou formaria fissuras irregulares. As olhaduras não são apenas um elemento estético; sua distribuição e tamanho influenciam a percepção da textura.
A atividade enzimática ao longo da maturação é intrinsecamente ligada ao pH da massa. As enzimas residuais do coagulante, as enzimas nativas do leite (como a plasmina, importante na quebra primária da caseína, cuja atividade é máxima em pH ligeiramente alcalino, mas ainda significativa em pH de queijo lavado) e, crucialmente, as enzimas liberadas pelas bactérias láticas (starter e, principalmente, a microbiota secundária) possuem faixas ótimas de pH para sua atuação.
Em queijos lavados, o pH mais alto pode favorecer a atividade de certas peptidases, alterando o perfil de peptídeos e aminoácidos livres produzidos, o que impacta diretamente o sabor (alguns peptídeos são amargos, outros saborosos; aminoácidos como glutamato contribuem para o umami). Da mesma forma, a lipólise (quebra de gorduras) pode seguir caminhos ligeiramente diferentes dependendo do pH, influenciando a liberação de ácidos graxos voláteis que contribuem para o aroma.
Por fim, a lavagem da coalhada é uma ferramenta poderosa no arsenal de controle de defeitos. Ela é essencial para prevenir problemas recorrentes em queijos mais ácidos, como:
- a textura excessivamente firme e quebradiça;
- o sabor acentuadamente ácido ou azedo;
- o dessoramento excessivo devido à baixa capacidade da matriz proteica em reter água em pH muito baixo.
No entanto, como toda ferramenta poderosa, exige conhecimento e precisão. Uma lavagem excessiva, que remova lactose demais, pode resultar em um pH final perigosamente alto, tornando o queijo um terreno fértil para o crescimento de microrganismos indesejados. Isso inclui bactérias patogênicas (que são mais inibidas em pH baixo) e microrganismos como coliformes (causando estufamento precoce) ou, mais criticamente, clostrídios butíricos (responsáveis pelo estufamento tardio em queijos maturados, com produção de gás e sabores e odores desagradáveis).
Um ajuste fino na produção
A base para o domínio da lavagem da coalhada não é apenas a tradição transmitida de geração em geração, mas a sólida ciência de laticínios.
Pesquisas detalhadas, documentadas em livros especializados e artigos científicos em periódicos de alto impacto, investigam os efeitos quantitativos das variáveis do processo. Esses estudos analisam o impacto de diferentes percentuais de remoção de soro, temperaturas da água de lavagem, tempos de mexedura e volumes de água adicionada sobre a composição química, a dinâmica das populações microbianas, as propriedades reológicas e os atributos sensoriais.
O conhecimento científico fornece aos tecnólogos as ferramentas para otimizar o processo, solucionar problemas e inovar, garantindo que cada lote de queijo lavado atenda aos padrões de qualidade e tipicidade esperados.
Em conclusão, a lavagem da coalhada transcende a noção de uma simples lavagem; é uma intervenção tecnológica de alta precisão que orquestra uma cascata de reações bioquímicas e físico-químicas na massa do queijo. Ao modular a fermentação da lactose e o pH subsequente, ela define a textura elástica e suave, o perfil de sabor menos ácido e mais complexo, a formação controlada de olhaduras e a estabilidade microbiológica de queijos que são ícones em suas categorias.
Dominar essa técnica exige uma profunda compreensão de seus fundamentos científicos e uma expertise prática para adaptar os parâmetros às especificidades de cada produção. A "arte de lavar a massa", longe de ser uma tradição estática, é um campo dinâmico de estudo e aplicação que continua a ser um pilar fundamental na produção de queijos de alta qualidade.
Referências bibliográficas
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Furtado, M. M. (2011). Principais Problemas dos Queijos: causas e prevenção. Fonte Comunicações e Editora.