Beatriz Oliveira1
Gislene Lopes
Ana Clarissa dos Santos Pires1
A qualidade do leite cru está intimamente relacionada com o grau de contaminação inicial que ocorre logo após a ordenha, com o tempo e temperatura de estocagem e com o transporte da matéria prima até a indústria. O controle das características físico-químicas e microbiológicas e os efeitos da estocagem são relevantes no processo de seleção do destino dessa matéria prima.
Ao consumir leite ou algum produto lácteo, alteração de sabor e odor, perda de consistência e gelatinização podem ser percebidos. Grande parte destes defeitos está diretamente relacionado com a proteólise, que é necessária em certa fase da fabricação de determinados tipos de queijos, porém também representa um grande problema para a indústria laticinista.
A proteólise consiste na quebra das ligações peptídicas das proteínas presentes no leite pela ação de enzimas específicas, fenômeno chamado clivagem hidrolítica. Estas enzimas podem ser provenientes do sangue do animal lactante, como em caso de mastite, ou podem ser resultantes do metabolismo de bactérias psicrotróficas, além das proteases endógenas (plasmina) que estão naturalmente presentes no leite.
A proteólise gera aminoácidos de cadeia média ou curta que são responsáveis por sabores e aromas indesejáveis em leite fluido. Além disso, o leite proteolisado diminui o rendimento na produção de seus derivados. O objetivo desta revisão foi discutir sobre a proteólise, especialmente sobre as origens das proteases no leite. Serão abordados também o efeito deteriorativo da proteólise sobre leite fluido e seus derivados, além de sua importância na maturação de alguns queijos.
2. Origens das proteases: Bactérias Psicrotróficas
No Brasil e em diversos países do mundo, logo após a ordenha, o leite é mantido refrigerado por 48 horas na fazenda até ser transferido para a indústria. A legislação brasileira recomenda que nesse tempo o leite seja mantido numa temperatura em torno de 4°C para inibir a deterioração do produto por bactérias mesófilas, porém, ao minimizar tal problema, outro imediatamente surge, já que temperaturas abaixo de 7°C facilitam a proliferação de bactérias psicrotróficas. (FONSECA; SANTOS, 2000)
Os microrganismos psicrotróficos estão amplamente distribuídos na natureza e sua principal fonte de contaminação no leite é a água sendo outras fontes o solo, poeira, vegetação e fezes (SHAH, 1994). Além disso, a contaminação antes e pós processamento do leite e produtos lácteos está comumente associada à higienização deficiente de equipamentos e superfícies em contato com alimentos.
A contagem de microrganismos psicrotróficos no leite cru está relacionada com as condições higiênicas de produção em combinação com tempo/temperatura que o leite permanece estocado até o momento do processamento. Em condições higiênico-sanitárias adequadas de obtenção do leite, a microbiota psicrotrófica representa menos que 10% da microbiota total inicial, comparada a mais de 75% sob condições não sanitárias. A estocagem prolongada e temperaturas de refrigeração oscilatórias potencializam a multiplicação de psicrotróficos no leite cru. (PINTO, 2004)
Uma importante característica dos psicrotróficos encontrados no leite e produtos derivados é a sua capacidade de síntese, durante a fase log, de enzimas extracelulares que degradam os componentes do leite. Ainda que durante a pasteurização do leite a maioria dos psicrotróficos seja destruída, este tratamento térmico tem pouco efeito sobre a atividade das enzimas termorresistentes produzidas por estes.
A maioria das bactérias psicrotróficas contaminantes do leite inclui espécies de bactérias Gram-negativas dos gêneros Pseudomonas, Achromobacter, Aeromonas, Serratia, Alcaligenes, Chromobacterium e Flavobacterium e bactérias Gram-positivas dos gêneros Bacillus, Clostridium, Corynebacterium, Streptococcus, Lactococcus, Leuconostoc, Lactobacillus e Microbacterium spp. Dentre as bactérias psicritróficas contaminantes, Pseudomonas constitui o gênero encontrado com maior frequência no leite e em derivados mantidos sob refrigeração (PINTO, 2004).
De acordo com a literatura referente à proteólise, existe uma correlação entre a contagem de microrganismos psicrotróficos e a proteólise no leite. Para verificar essa afirmação, os pesquisadores NOMBERG M.F.B.L., TONDO E.C. & BRANDELLI A. realizaram um experimento onde analisaram-se microbiologicamente amostras de leite provindas de diferentes laticínios do Rio Grande do Sul. Os resultados demonstraram que o leite contendo uma maior contagem de psicrotróficos não apresentou maior atividade proteolítica do que o leite que continha uma contagem menor. Dessa forma, os pesquisadores concluiram algo diferente do que a literatura nos apresenta e sugeriram que a proteólise pode estar relacionada com linhagens específicas de psicrotróficos que apresentam alta capacidade proteolítica.
2.1 Origens das proteases: Mastite
Outra origem das proteases está ligada a um problema de saúde muito comum em vacas leiteiras, a mastite. A mastite encontra sua origem na proliferação de diversos microrganismos, cujo grupo de maior contribuição para a doença é o das bactérias (TRONCO, 2003), como Streptococcus agalactiae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli (SANTOS, 2001) dentre diversos outros, além de leveduras e fungos (TRONCO, 2003).
A resposta inflamatória da glândula mamária à colonização e multiplicação bacteriana apresenta como consequência indireta o aumento do número de leucócitos de origem do sangue (células de defesa) que se difundem para o lúmen alveolar (GODKIN, 2000). Estes leucócitos de origem sanguínea, somados às células de escamação do epitélio glandular secretor, são denominados coletivamente de células somáticas do leite (GIGANTE, 2008).
A contagem de células somáticas (CCS) do tanque tem sido utilizada como a prática mais usual para identificação de leite mastítico provindo de vacas que apresentam a mastite subclínica, variação da doença que não apresenta sintomas visíveis (MÜLLER, 2002). De acordo com a Instrução Normativa n° 62/2011 (MAPA) em vigor no presente momento, o número máximo de células somáticas que o leite pode apresentar é de 600.000 cels/mL, se a contagem ultraar esse valor, o leite deve ser descartado e o produtor provavelmente será punido.
Em caso de mastite, a qualidade do leite é inferior devido à inibição da síntese de seus principais componentes, que ocorre na glândula mamária, como gordura, lactose e proteínas, além do influxo de componentes do sangue para o leite dentre os quais destacam-se sódio, cloro, imunoglobulinas e outras proteínas séricas (SCHÄELLIBAUM, 2001; MÜLLER, 2002).
O efeito da mastite sobre a concentração total de proteína do leite é variável. Entretanto, devido ao aumento do influxo de proteína de origem do sangue, como imunoglobulinas e soroalbumina bovina, e a concomitante diminuição da síntese de proteína nas células epiteliais (α-caseína, β-caseína, α-lactoalbumina e β-lactoglobulina), o efeito geral é de manutenção de níveis proteína total relativamente constante ou de mudanças muito pequenas (FONSECA; SANTOS, 2000).
Por ser a proteína de maior concentração no leite e possuir alta susceptibilidade devido à sua estrutura desorganizada, a caseína é a mais atingida pela proteólise e, consequentemente, a que mais sofre redução (VERDI et al., 1987), sendo a plasmina, principal protease presente no leite, a responsável por sua hidrólise (SAEMAN et al., 1988; VERDI and BARBANO, 1991). A porcentagem de caseína/proteína total é menor para o leite de vacas com mastite subclínica em comparação com leite normal (VERDI et al, 1987).
Outras alterações na quantidade de proteínas durante o processo mastítico ocorrem entre as próprias frações da caseína. Enquanto as frações α e β são reduzidas, a fração γ é aumentada devido à desestabilização da β-caseína (LE ROUX et al. 1995).
As proteínas do soro também são afetadas pela alta CCS, já que elas apresentam uma elevação em seus números, assim como a soroalbumina bovina e imunoglobulinas em razão do aumento do já citado influxo de substâncias do sangue para o leite. β-lactoglobulina e α-lactoalbumina, como são sintetizadas na glândula mamária, apresentam considerável redução em seus níveis (ROGERS et al., 1989).
A atividade proteolítica no leite pode ser estimulada por duas classes distintas de proteases: as endógenas, como a plasmina, ou as enzimas proteolíticas provenientes dos leucócitos (VERDI and BARBANO, 1988). Além disso, em presença de alta contagem de células somáticas, os microrganismos psicrotróficos são estimulados a liberar mais enzimas hidrolíticas extracelulares contribuindo significativamente para a degradação das proteínas do leite (COUSIN, 1982).
1 Laboratório de Leite e Derivados - Departamento de Tecnologia de Alimentos - Universidade Federal de Viçosa - MG