O Transtorno do Espectro Autista (TEA), mais conhecido como Autismo, abrange uma série de condições, incluindo o transtorno autístico, autismo infantil, autismo da infância ou autismo infantil precoce. Caracteriza-se por deficiências significativas e persistentes na interação social, comunicação alterada e padrões de comportamento e interesses s ou repetitivos. Estudos indicam que aproximadamente 60% a 70% das pessoas com autismo apresentam algum nível de deficiência intelectual. Esse declínio provavelmente é atribuído à maior conscientização sobre as manifestações do autismo em indivíduos com habilidades cognitivas mais elevadas, resultando em um aumento nos diagnósticos de autismo. Normalmente, as anormalidades nessas áreas começam a surgir por volta dos três anos de idade (Fernandes, 2022).
A anormal permeabilidade intestinal observada em indivíduos com autismo resulta em uma inadequada digestão de peptídeos, provenientes da quebra de proteínas alimentares. Estes peptídeos parcialmente digeridos adentram a corrente sanguínea, potencialmente desencadeando uma resposta autoimune. Ao atravessarem a barreira hematoencefálica, esses peptídeos atuam como opioides, afetando o sistema nervoso central (SNC) e contribuindo para a intensificação dos sintomas associados ao autismo. Atualmente, como uma alternativa terapêutica para o autismo, as dietas com restrição de glúten e caseína têm sido extensivamente estudadas e debatidas. Isso se deve ao fato de que as proteínas mal digeridas geram peptídeos conhecidos como gluteomorfinas e caseomorfinas, os quais possuem estruturas similares aos opioides e exercem efeitos cerebrais análogos (Zorzo, 2017).
O TEA emergiu como um dos distúrbios mais abordados e analisados na contemporaneidade, em virtude de sua prevalência em ascensão. As intervenções nutricionais têm desempenhado um papel significativo no tratamento dos indivíduos autistas, promovendo uma dieta adequada e balanceada, com especial atenção ao eixo intestino-cérebro. Esta abordagem visa não apenas aprimorar o estado geral de saúde, mas também proporcionar uma melhor qualidade de vida (Gupta, Huchendorf, & Huchendorf, 2021). Diante a esse cenário, o objetivo geral desse texto é compreender a influência do glúten e da caseína nas desordens gastrointestinais do portador de autismo.
Leite A2 e autismo
A hidrólise de cereais e proteínas do leite gera peptídeos opioides/neuropeptídeos exógenos (Korhonen e Pihlanto, 2006), como a gluteomorfina e a casomorfina, relacionados à liberação de neurotransmissores com atividade opioide no intestino (Mari-Bauset et al., 2014). A β-casomorfina-7 (β-CM7), proveniente da beta-caseína do leite de vaca, e os peptídeos opioides do glúten interagem com receptores opioides no cérebro, agravando condições neurológicas como autismo e esquizofrenia (Cieslinska et al., 2017). Estudos apontam concentrações elevadas de BCM-7 na urina de pacientes com TEA, atribuídas à redução da atividade enzimática digestiva. Considerando esses aspectos, a inclusão do Leite A2 na dieta pode ser benéfica para indivíduos com TEA que buscam opções alimentares que minimizem os potenciais efeitos negativos sobre o sistema digestivo.
O leite A2 é aquele que possui apenas a β-caseína A2. A β-caseína do leite de vaca possui 209 aminoácidos, sendo que as variações A1 e A2 diferem apenas por um aminoácido na posição 67. Quando as enzimas digestivas interagem com a molécula de β-caseína A1, ela é quebrada justamente na posição 67, liberando um peptídeo de sete aminoácidos, o BCM-7 (Figura 1). A presença de prolina, em vez de histidina, na variante A2, evita a hidrólise da ligação peptídica entre os resíduos 66a e 67a na β-caseína A2 e inibe a produção de BCM-7 (Pal et al., 2015).
Figura 1. Diferença na cadeia de aminoácidos entre a β-caseína A1 e A2.
Fonte: Adaptado de Pereira Neta et al., (2018).
A caseína e seus derivados, particularmente o BCM-7, exercem uma variedade de efeitos sobre a função gastrintestinal, incluindo a redução da frequência e da amplitude das contrações intestinais (Thiruvengadam et al., 2021). A ingestão de leite A2A2 de vacas com o genótipo A2A2 pode ser uma opção para pessoas com sensibilidade digestiva ao leite, o que pode ajudar.
Utilizando o método ELISA de alta sensibilidade para detectar casomorfinas, observou-se concentrações significativamente maiores de BCM-7 bovinos na urina de pacientes com síndrome de Asperger (forma mais suave de TEA) em comparação com crianças saudáveis. Esses níveis eram ainda mais elevados em pacientes com síndrome de Kanner (forma mais grave de TEA) do que em pacientes com síndrome de Asperger. Acredita-se que a redução da atividade das enzimas digestivas e/ou a diminuição da atividade da peptidase no sangue sejam as causas do aumento das concentrações de BCM-7 circulante (Sokolov et al., 2014).
Um protocolo dietético sem glúten e sem caseína (SGSC), frequentemente utilizado como uma abordagem alternativa de tratamento para pacientes com TEA, é comumente combinado com essas dietas. A SGSC é a intervenção com dieta restritiva de alimentos que possuem caseína e glútem (Figura 2) mais estudada e mencionada na literatura, sendo também a mais frequentemente adotada por indivíduos e famílias de crianças com TEA. Por outro lado, para pessoas com galactosemia ou alergia ao leite de vaca, as dietas sem caseína têm como objetivo eliminar essas proteínas encontradas nos produtos lácteos (Domene, 2011).
Figura 2. Exemplos de alimentos que possuem caseína e glúten.
Fonte: Dos autores, 2024.
Impacto dos Peptídeos Intestinais no autismo
Em crianças com TEA, os peptídeos incompletamente digeridos podem atravessar a mucosa intestinal devido à permeabilidade intestinal aumentada, comum nesse grupo, resultado da formação de poros anormais causados por fatores imunológicos ou lesões (Mari-bauset et al., 2014). Esses peptídeos podem transar a Barreira Hematoencefálica (BHE), alcançando a corrente sanguínea e, posteriormente, o sistema nervoso central, onde promovem efeitos negativos na maturação cerebral, atenção, comunicação social e aprendizado (Navarro et al., 2015).
O aumento dos níveis de peptídeos opioides afeta as funções cerebrais, influenciando sintomas como perda de contato visual, dificuldade de aprendizagem, hiperatividade, movimentos estereotipados e automutilação (Dinan e Cryan, 2012). Inicialmente, foi proposta a hipótese de que a dieta sem glúten e sem caseína (SGSC) poderia melhorar a aprendizagem, os comportamentos sociais, a função cognitiva e as habilidades de comunicação (Mcconachie e Diggle, 2007). Com base nessa hipótese, essa dieta ou a ser considerada um método de tratamento alternativo para reduzir os sintomas do TEA (Pennesi e Klein, 2012). Devido à possibilidade de os derivados da caseína e do glúten atraírem o sistema opioide, a dieta sem glúten e sem caseína (SGSC) pode reduzir os sintomas comuns do TEA, como a sensibilidade reduzida ao dor e aos comportamentos sociais alterados (Ciéslinska et al., 2017).
Apesar de haver evidências inconclusivas sobre a eficácia e segurança da dieta sem glúten (DSG) ou da dieta sem glúten e sem caseína (SGSC) em crianças com TEA, a adoção dessas dietas é alta. Estudos que avaliam essa adoção frequentemente tentam identificar os possíveis benefícios da dieta principalmente por meio de análises transversais, utilizando escalas de sintomas/respostas de pesquisas ou relatos anedóticos de cuidadores (Trudeau et al., 2019).
Considerações finais
O TEA é um distúrbio complexo que afeta a comunicação, interação social e linguagem, além de apresentar interesses s e comportamentos repetitivos. Com o aumento da prevalência do TEA em todo o mundo, há uma demanda crescente por intervenções eficazes para melhorar a qualidade de vida das crianças afetadas. Diante da limitada eficácia das abordagens tradicionais e da alta incidência de distúrbios gastrointestinais em pessoas com TEA, surgem as dietas de restrição como uma possível alternativa. Considerando esses aspectos, a inclusão do Leite A2 na dieta pode ser benéfica para indivíduos com TEA que buscam opções alimentares que minimizem os potenciais efeitos negativos sobre o sistema digestivo. No entanto, são necessárias mais pesquisas para entender completamente o papel das dietas de restrição, incluindo o Leite A2, no manejo do TEA e para determinar sua eficácia e segurança a longo prazo. Essa abordagem integrativa pode fornecer novas perspectivas e esperanças para indivíduos com TEA e suas famílias, oferecendo uma abordagem mais abrangente e personalizada para o tratamento e cuidado dessas condições complexas.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais - Instituto de Laticínios Cândido Tostes (EPAMIG-ILCT), ao o Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais, Campus Rio Pomba.
Referências
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Sokolov, O.; Kost, N.; Andreeva, O.; Korneeva, E.; Meshavkin, V.; Tarakanova, Y; et al. Autistic children display elevated urine levels of bovine casomorphin-7 immunoreactivity. Peptides, 56, 68–71, 2014.
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Zorzo R. A. Impacto do microbioma intestinal no eixo cérebro-intestino. International Journal of Nutrology, Rio de Janeiro, 10, 1, 298 - 305, 2017.
Autores:
Clarice Coimbra Pinto - Mestranda em Ciência e Tecnologia do Leite e derivados – UFJF.
Tatiane Teixeira Tavares - Bolsista de pesquisa nível I do Instituto de Laticínios Cândido Tostes - EPAMIG-ILCT).
Rafaela Teixeira Rodrigues Do Vale - Eng. de Alimentos (UFCG), Mestre e Doutora em C&TA (UFV-DTA), Profª coordenadora do Núcleo de Estudos em Queijos (NEQue) do IF Sudeste MG Rio Pomba).
Luisa Cordeiro de Oliveira - Bolsista de pesquisa nível II do Instituto de Laticínios Cândido Tostes - EPAMIG-ILCT.
Claudety Barbosa Saraiva - Professora Dra. e Pesquisadora do Instituto de Laticínios Cândido Tostes/EPAMIG.
Junio Cesar Jacinto de Paula - Professor Dr. e Pesquisador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes/EPAMIG.