Sabe-se que o queijo surgiu há milhares de anos e, provavelmente, sua origem está ligada à domesticação dos mamíferos (cabras, ovelhas). O leite obtido era estocado, quando se observou que em dadas condições ocorria uma modificação na sua estrutura física e, acidentalmente, produziam-se derivados lácteos como o queijo (FOX et. al. 2000).
O leite pode sofrer processos de desestabilização por ser um sistema coloidal. Um exemplo é a coagulação, que pode derivar do processamento ou estocagem do alimento (SOUSA, SANTOS, PIRES, 2023). Para obtenção de queijos, a coagulação das proteínas, destacando-se a caseína, é desejável. Neste caso, processos físico-químicos desencadeiam alterações na estrutura das micelas de caseína, resultando na coagulação do leite.
Dos constituintes do leite, 3,5% correspondem às proteínas, das quais 80% são caseínas e 20% são proteínas do soro. A caseína é uma proteína essencial, constituindo aproximadamente 80% do conteúdo proteico do leite e desempenhando um papel vital na glândula mamária, transportando cálcio, fosfato e proteínas essenciais para o neonato. Ela é composta por quatro principais frações: αS1-, αS2-, β- e κ- caseína, representando cerca de 38%, 10%, 35% e 15% de sua composição, respectivamente. A caseína forma micelas, estruturas estáveis com atividade anfipática que permitem a interação das partes hidrofílicas com a água, enquanto as regiões hidrofóbicas se agrupam, facilitando a emulsificação e a digestão (BRASIL et al., 2015). Além disso, essa proteína contém sequências fosforiladas que aumentam sua capacidade de se ligar a minerais, influenciando suas propriedades funcionais e digestibilidade. Nutricionalmente, a caseína é digerida lentamente, liberando aminoácidos gradualmente na corrente sanguínea, o que é benéfico para o crescimento e a manutenção do estado anabólico. Esses aspectos tornam a caseína essencial não apenas para a produção de queijo, mas também para a saúde geral dos consumidores (VIDAL, 2018).
As micelas de caseína são estruturas supramoleculares dinâmicas, que se transformam em função de mudanças no ambiente, como variações de pH, temperatura, força iônica e presença de enzimas, entre outros (SILVA, 2019). O processo de coagulação está relacionado às alterações na estrutura da caseína, destacando-se a coagulação ácida e a enzimática.
O primeiro processo de coagulação ocorre por meio da produção de ácido lático por bactérias ou pela adição direta de ácidos orgânico ao leite. Já o segundo ocorre via hidrólise, a partir da adição de enzimas específicas presentes no coalho ou coagulante.
Diante de uma extensa variedade de queijos no mercado e reconhecendo-se esse alimento como uma iguaria atemporal apreciada globalmente, este artigo tem o objetivo de abordar aspectos inerentes à sua tecnologia: a coagulação ácida e a coagulação enzimática.
Coagulação ácida
A coagulação ácida pode ocorrer de duas maneiras, uma através da adição de cultura e outra espontaneamente, provocada pelas bactérias láticas presentes no leite. A coagulação ácida do leite é um processo que ocorre por meio da adição de culturas starter, as quais fermentam a lactose presente no leite, resultando na produção de ácido lático. Este aumento na concentração de ácido lático provoca uma diminuição do pH do leite. À medida que o pH se reduz, as micelas de caseína começam a se agregar. Quando o pH atinge o ponto isoelétrico da caseína, que é em torno de 4,6, forma-se uma rede de caseína induzida pela acidificação, frequentemente referida como "gel" (MOSTARO, 2022). Esse gel é fundamental para a textura e a estrutura dos produtos lácteos, como queijos, pois permite a retenção de água e a formação de um produto coeso.
Paula, Carvalho e Furtado (2009) destacam que a função primária das culturas "starter" na fabricação de queijos é a produção de ácido, que é essencial para o processo de coagulação e formação da maioria dos tipos de queijo. O pH da massa de queijo diminui para aproximadamente 5,0 em um período que varia entre 5 a 20 horas, dependendo da variedade do queijo em questão. Essa acidificação ocorre devido à fermentação da lactose em ácido lático pelas bactérias láticas que são adicionadas ao leite. Em alguns casos, a acidificação pode ser realizada de forma direta por meio da adição de ácido lático. Tradicionalmente, os queijeiros dependiam da microbiota endógena presente no leite cru para realizar a fermentação da lactose, uma prática que ainda é observada na produção do queijo Minas.
Quando as caseínas interagem e formam a micela de caseína um nanoagregado proteico. Para compreender a formação da micela, Sousa, Santos e Pires (2023) ressaltam que na superfície da estrutura da caseína encontra-se a k-caseína, que é hidrofílica, considera-se que a caseína possui carga residual líquida negativa (pH = 6,6) o que impede a aglomeração resultando em um meio estável com repulsões estéricas e eletrostáticas. A estabilidade das micelas tem ligação direta com o pH do meio, o abaixamento ocorre devido à acidificação e quando chega no pH = 4,6, que é o ponto isoelétrico, as cargas positivas (íons H+) que foram geradas durante a acidificação fazem com que as micelas, que anteriormente sofriam repulsões eletrostáticas devido às cargas negativas (íons H-), se aproximem, levando à desestabilização do sistema e por fim ao agregado de caseínas (coagulação ácida).
A baixas temperaturas (de 0 a 5 °C), o leite pode ser acidificado até o pH de 4,6 sem formação de coágulos; a única mudança é a viscosidade. Por outro lado, as caseínas precipitam a pH elevado à medida que a temperatura aumenta. Por exemplo, a uma temperatura de 20 °C, as caseínas precipitam com um pH aproximadamente de 4,6; a uma temperatura de 40 °C, a precipitação começa a ocorrer com um pH próximo a 5,2.
Os fermentos mesofílicos e termofílicos podem ser usados para a formação do coágulo ácido. O cultivo termofílico está se tornando mais popular no Brasil, mas o fermento mesofílico ainda é usado com mais frequência. O soro fermento ainda é usado na produção de alguns tipos de queijos no Brasil, principalmente quando se usa leite cru (FURTADO, 1997).
A formação de um resíduo proteico insolúvel engloba a gordura e toda a fase aquosa em uma rede tridimensional, resultando no coágulo obtido. A coalhada láctica é porosa, frágil e difícil de dessorar. A produção de queijos moles (Tabela 1) se utiliza esta coagulação (ORDONEZ, PEREDA, 2005; CASTILHO 2008).
Tabela 1. Exemplos de queijos produzidos por coagulação ácida.
Queijo |
Descrição |
Queijo Minas Frescal |
Queijo branco e macio, típico do Brasil, ideal para consumo fresco |
Queijo Cottage |
Caracterizado por sua textura granulada e sabor delicado, popular em dietas saudáveis |
Queijo Queso Blanco |
Queijo fresco e não maturado, muito utilizado na culinária latino-americana, valorizado por sua versatilidade |
Paneer |
Queijo fresco da culinária indiana, amplamente utilizado em pratos tradicionais, como o palak paneer |
Fonte: Dos autores, 2024.
Coagulação enzimática
É o processo mais utilizado atualmente, no qual é realizado pela adição de enzimas específicas, conhecidas como coalho ou coagulante, este processo resulta em uma estrutura mais firme e complexa, ideal para a produção de queijos maturados (Tabela 2). A coagulação enzimática permite um controle mais preciso sobre a textura e o sabor do queijo, resultando em produtos com características distintas (WALSTRA et al., 2006).
A maturação, ou affinage, é um processo crucial para esses queijos, pois contribui para o desenvolvimento de sabores e aromas complexos. Durante a maturação, os queijos am por alterações bioquímicas, como a degradação de proteínas e a lipólise, que enriquecem sua paleta sensorial. Por exemplo, queijos como o Roquefort adquirem notas picantes devido à ação de fungos específicos durante a maturação. Além disso, a coagulação enzimática pode influenciar a textura do queijo, proporcionando desde queijos duros e quebradiços até queijos macios e cremosos, dependendo das condições de produção e maturação (McSWEENEY, 2004).
Tabela 2. Exemplos de queijos produzidos por coagulação enzimática.
Queijos |
Descrição |
Parmigiano-Reggiano |
Queijo duro e granular, com sabor intenso e picante |
Cheddar |
Queijo semi-duro, com sabor forte e levemente ácido, que varia em cor |
Gouda |
Queijo semi-duro, doce e suave, que se intensifica com a maturação |
Brie |
Queijo macio com crosta de mofo, de sabor suave e amanteigado |
Roquefort |
Queijo azul de leite de ovelha, picante e cremoso |
Emmental |
Queijo suíço caracterizado por buracos, com sabor suave e levemente noz |
Feta |
Queijo esfarelado, salgado e ácido, frequentemente usado em saladas |
Mozzarella |
Queijo fresco, elástico e suave, ideal para pizzas e saladas |
Fonte: Dos autores, 2024.
A denominação do coalho é devida às enzimas obtidas a partir do quarto estômagos de ruminantes jovens, como por exemplo o coalho bovino. Nessa extração, existem duas enzimas principais: pepsina e quimosina. Já a denominação de coagulante se direciona a todas as enzimas utilizadas na coagulação do leite obtidas por meios alternativos, como vegetais e microbianos.
Na coagulação enzimática, a quimosina é a principal enzima e quanto maior a sua quantidade, melhor a ação do coalho. A quimosina hidrolisa os aminoácidos fenilalanina na posição 105 (Phe105) e metionina na posição 106 (Met106). A pepsina não é vantajosa, pois ela hidrolisa os aminoácidos em vários pontos diferentes, o que é prejudicial para a formação da coalhada, maturação e rendimento dos queijos. Na coagulação enzimática, o coágulo ocorre em duas etapas. Primeiramente, ocorre a hidrólise da kappacaseína (κ-cas), proteína que estabiliza a micela de caseína. Posteriormente, tem-se a agregação das micelas modificadas pela ação do coalho, formando-se o gel (SILVA & SALGADO, 2013).
A coagulação do leite é influenciada por diversos fatores que desempenham papéis cruciais no processo. Primeiramente, a coagulação e a formação do gel não ocorrem em temperaturas inferiores a 18 °C, enquanto temperaturas acima de 55 a 60 °C inativam o coalho. Em contrapartida, temperaturas próximas a 40 °C favorecem a ação do coalho, resultando em um tempo de coagulação reduzido. Além disso, a proximidade do pH ao valor ótimo para a atividade da enzima, que é cerca de pH 6,0, potencializa a eficácia do coalho e aumenta a força da coalhada. A presença de cálcio solúvel no meio também é um fator determinante: quanto maior a concentração desse mineral, mais rápida será a formação do coágulo e maior será sua firmeza. Por fim, a porcentagem de caseína no leite está diretamente relacionada à coagulabilidade; uma maior concentração de caseína resulta em uma coagulação mais eficiente. Da mesma forma, uma maior concentração de enzimas acelera o processo de coagulação do leite, reduzindo o tempo necessário para a formação do coágulo (VASCONCELOS, ARAÚJO & VERRUMA-BERNARDI, 2004).
Após a coagulação, a rede de coalhada continua sua formação por um tempo considerável após a obtenção de um gel visível, mesmo após o corte. A força do gel formado é muito importante do ponto de vista de sinérese e, consequentemente, para o controle de umidade e rendimento da fabricação.
Principais diferenças entre a coagulação enzimática e a ácida
O leite possui caseína que, independentemente de ser coagulada por meio ácido ou enzimático, apresenta semelhanças. No entanto, as diferenças são notáveis quando observamos o coágulo resultante, que possui propriedades físico-químicas e tecnológicas distintas. A primeira diferença notável é a consistência do coágulo, que tem relevância tecnológica. O coágulo ácido, em sua fase inicial, é extremamente delicado, se dispersando em partículas finamente divididas com facilidade. Contudo, se for cuidadosamente fracionado, o que causa a dessora, resulta em um precipitado seco e sólido, mas frágil. Por outro lado, o coágulo enzimático é mais resistente e elástico desde o início, assemelhando-se a um gel de gelatina, que se torna cada vez mais resistente. Quando fracionado, contrai-se por sinérese, originando um precipitado consistente e elástico, ou seja, não é frágil como o coágulo ácido (AQUARONE et. al., 2001; CASTILHO, 2008).
A Figura 1 compila as principais diferenças entre a coagulação enzimática e a ácida, as quais influenciam diretamente a produção, textura e sabor dos queijos resultantes de cada tipo de coagulação.
Figura 1. Principais diferenças entre a coagulação enzimática e a ácida.
Fonte: Dos autores, 2024.
A coagulação enzimática, amplamente utilizada na indústria queijeira atual, e a coagulação ácida, que provavelmente deu origem ao primeiro queijo, são processos distintos que resultam em produtos com características físico-químicas e sensoriais únicas. Cada método tem suas vantagens e desvantagens, e a escolha entre um e outro depende do tipo de queijo que se deseja produzir. Tudo indica que o processo de coagulação do leite foi descoberto por acidente e por curiosidade, apesar de a coagulação ácida ter desencadeado, provavelmente, o processo de produção de queijo, hoje a coagulação enzimática é mais utilizada nas indústrias.
No entanto, apesar de suas diferenças, tanto a coagulação ácida quanto a enzimática compartilham um objetivo comum: transformar o leite em queijo, um alimento que desempenha um papel importante em nossa dieta e cultura. A compreensão desses processos e suas implicações é, portanto, essencial para a produção de queijos de alta qualidade e, consequentemente, o crescimento contínuo da indústria queijeira.
Referências
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MOSTARO, L. Coagulação do leite: do fluido ao gel! Milkpoint, 2022.
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Autores
Gabriel Otávio Magno Garcia
Henrique Hansen Laier
Kattorin Luiza Lourenço De Santana
Letícia Dias Soares
Luciano Jorge Vireque
Samuel Marcenes Cunha
Tatiane Teixeira Tavares
Ana Flávia Coelho Pacheco Paiva
Paulo Henrique Costa Paiva