Os tratamentos térmicos como a pasteurização e a ultrapasteurização do leite são realizados nas indústrias de laticínios.
Você já parou para pensar em como a pasteurização é fundamental em qualquer processo de laticínios? Vou além: sem a pasteurização não existiria a indústria de laticínios como conhecemos. Este tratamento térmico é o coração de toda fábrica que beneficia leite.
Os tratamentos térmicos em geral possuem grande importância para o desenvolvimento dos diversos derivados. Isso se deve à natureza e à composição do leite, que é susceptível a alterações quando exposto ao calor.
Neste artigo, vamos entender algumas dessas alterações e seus impactos na elaboração dos produtos lácteos.
O que é tratamento térmico?
Um tratamento térmico consiste na exposição de um material a uma determinada temperatura por um determinado tempo. É importante frisar que é uma combinação de tempo e temperatura. Embora a temperatura pareça o fator mais importante, o tempo também determina a magnitude das modificações que ocorrem.
Um bom exemplo que está na rotina do profissional de laticínios é a própria pasteurização. Temos dois tratamentos equivalentes, o HTST (High Temperature Short Time ou Pasteurização rápida) que utiliza o binômio 75°C por 15 segundos, e o LTLT (Low Temperature Low Time ou Pasteurização lenta) de 60°C por 30 minutos. Mesmo com temperaturas diferentes, o resultado para o leite é o mesmo e isso se deve aos diferentes tempos de exposição.
Na introdução deste artigo mencionei que sem esse tratamento não existiria a indústria de laticínios. Essa afirmação não é um exagero.
Pasteurização do leite
A pasteurização foi descoberta por Lois Pasteur em 1862 e seu principal objetivo é a eliminação dos microrganismos patogênicos. Consegue imaginar a indústria se desenvolvendo sem ofertar produtos seguros para o consumo?
Além disso, o tratamento prolonga a vida de prateleira do produto pela redução da carga microbiana geral. Isso permite o melhor aproveitamento do leite pela indústria, além de, claro, o aumento do consumo do leite puro pela população.
Tratamento UHT ou Ultrapasteurização
Outro tratamento bastante utilizado é o UHT (Ultra-high Temperature), que utiliza uma temperatura de 135°C por 3 a 5 segundos. Também chamado de ultrapasteurização, o tratamento UHT foi desenvolvido em 1940 com o objetivo de eliminar todos os microrganismos presentes no leite, permitindo assim uma extensão da validade além da que tinha o leite pasteurizado.
Embora o tratamento UHT eliminasse as bactérias, a etapa de envase sempre levava a uma recontaminação, o que diminuía a validade do produto. Esse problema foi resolvido com o desenvolvimento das embalagens e sistema de envase assépticos.
Alterações provocadas no leite
Além da pasteurização e da ultrapasteurização, que tem foco na eliminação de bactérias, outros tratamentos são utilizados na indústria de laticínios. A maioria deles é chamado de pasteurização, porém possuem objetivos diferentes.
Exemplos são a pasteurização do leite no processo do iogurte e a pasteurização da mistura de leite e açúcar na fabricação de leite condensado. Nesses casos, o foco são estas mudanças nas características do leite, que são benéficas para estes produtos.
Mas afinal, quais mudanças são essas?
O leite é um alimento complexo e para entender as modificações causadas pela exposição a um tratamento térmico, devemos avaliar os constituintes do leite em separado.
Ele é composto basicamente por proteínas, gorduras, carboidratos, vitaminas e sais (Além de água). O tratamento térmico afeta cada um destes constituintes de forma diferente, mas os efeitos como um todo são percebidos tanto no leite como no processamento deste.
As proteínas são os compostos mais susceptíveis a variações de temperatura, sendo, portanto, as principais responsáveis pelas propriedades térmicas do leite. Podemos dividir essas proteínas em dois grupos: as soro-proteínas e as caseínas.
Vamos entender o que ocorre com cada uma delas:
As soro-proteínas e a desnaturação
As soro-proteínas se apresentam no leite in natura como estruturas globulares em sua maioria. Essa estrutura, que pode ser didaticamente comparada a um novelo de lã, é mantida por meio de ligações de hidrogênio e pontes dissulfeto. Essas ligações não são fortes como as ligações covalentes que mantém os aminoácidos da proteína unidos, mas é o suficiente para manter a estrutura funcional da proteína.
Acontece que o aumento da temperatura tem efeito na ruptura dessas ligações, que leva a perda da estrutura globular. Este processo é conhecido como desnaturação. É como se o novelo fosse sendo desenrolado.
A desnaturação já começa a ocorrer em temperaturas acima de 60°C. Porém, conforme falamos, os efeitos de um tratamento dependem do tempo de exposição. Quanto mais tempo durar esse tratamento, maior será a desnaturação. Da mesma forma, quanto maior a temperatura, maior a intensidade dessas modificações.
A quebra das ligações não é a única reação que ocorre com as proteínas. Os grupos antes ligados agora estão livres para fazerem novas interações. Dentre elas podemos citar as interações com a água, que leva ao aumento de viscosidade do meio e as interações proteína-proteína, que pode levar à formação de precipitados.
Na pasteurização (HTST ou LTLT), ocorre a desnaturação de aproximadamente 20% das proteínas do soro, o que não implica em grandes alterações tecnológicas.Já no tratamento UHT esta desnaturação pode chegar a 80%. Isso é suficiente para que as proteínas desnaturadas se liguem às caseínas.
Essa interação dificulta a atuação da enzima do coalho, levando a má formação da coalhada. Este é o motivo pelo qual não dá para fazer queijo com leite UHT.
Porém esta mesma interação tem efeito no aumento da viscosidade, o que é desejável em outros derivados, como por exemplo o iogurte. A pasteurização no iogurte utiliza temperaturas acima de 80°C e um tempos geralmente maiores que um minuto.
As caseínas e a estabilidade
As caseínas respondem de forma diferente aos tratamentos térmicos. Isso se deve principalmente à sua estrutura. As caseínas compreendem 80% das proteínas do leite e se apresentam em forma de aglomerados, também conhecidos como micelas. Essas micelas se mantêm estáveis no leite por meio de interações hidrofóbicas e eletrostáticas.
Por não ter uma estrutura definida, como é o caso das soro-proteínas, as caseínas não se desnaturam. Isso quer dizer que elas não são afetadas pela temperatura? Não é bem assim.
Além das interações citadas, o fosfato de cálcio desempenha um papel importante em sua estrutura, ligando as frações de caseína no interior da micela. Esse fosfato de cálcio está presente na micela na forma de nanoclusters e são insolúveis em água.
O cálcio tem a solubilidade diminuída com o aumento da temperatura. A exposição do leite a um tratamento térmico leva a insolubilização do cálcio que está na fase aquosa, fazendo com que ele migre para as micelas.
Esse mecanismo desestabiliza as interações que ocorrem tanto no interior da micela quanto entre diferentes micelas, levando à coagulação dessas proteínas. A pasteurização contribui para essa migração do cálcio, mas em um leite de boa qualidade este tratamento não é suficiente para desestabilizar as proteínas.
Existem outros fatores que afetam a solubilidade do cálcio no meio. Em um leite com acidez elevada, por exemplo, o cálcio já está no caminho da insolubilização. Ao aquecer este leite o efeito será potencializado, levando à coagulação.
Já o processo UHT, bem mais severo, resulta na desestabilização das proteínas. O “pulo do gato” tecnológico é a adição de estabilizantes. Os fosfatos de sódio e similares atuam no leite sequestrando o cálcio e formando complexos. Esses complexos se mantêm solúveis durante e após a ultrapasteurização, mantendo a estabilidade das micelas e evitando a coagulação.
Já é possível ver leites UHT sem estabilizantes nas gondolas dos supermercados. O segredo é um leite de excelente qualidade somado ao processamento rápido (para evitar ao máximo a deterioração) e temperaturas mais baixas possíveis dentro do que é caracterizado como UHT.
Outras modificações
Os outros constituintes do leite possuem menor impacto nas características tecnológicas do leite, sendo mais importantes para o aspecto sensorial. A lactose, por exemplo, do ponto de vista térmico é afetada principalmente pela reação de escurecimento não enzimático.
A famosa reação de Maillard não possui efeitos muito relevantes nos tratamentos de pasteurização e UHT. Isso se deve ao curto tempo destes tratamentos, que também não reúnem as condições ideais para um escurecimento pronunciado.
Ainda assim, é possível perceber um leve escurecimento em leites UHT, principalmente aqueles em que a lactose foi hidrolisada. A quebra da lactose libera glicose e galactose, dois açúcares redutores que favorecem a reação de Maillard.
Os lipídeos são os componentes menos afetados pelos tratamentos térmicos citados. A gorduras em geral, o que inclui a presente no leite, possuem alta estabilidade ao calor. Isso se deve principalmente à sua estrutura molecular. Mesmo após o tratamento térmico UHT, os lipídeos do leite não apresentam modificações significativas.
Sobre os minerais, sais como sódio, potássio e outros não possuem tanta importância quando o cálcio quando estamos falando em tratamento térmico. Dentre os sais ele é o mais afetado pela temperatura e além do efeito citado nas proteínas, a perda de solubilidade e consequente precipitação deste sal tem consequências tecnológicas.
O cálcio em solução é fundamental para a fabricação de queijos. Ao ar por um tratamento térmico, parte deste cálcio se torna indisponível para a formar o paracaseinato de cálcio, etapa indispensável para a que ocorra a coagulação enzimática do leite.
Mesmo um tratamento térmico mais ameno como a pasteurização (Mesmo a LTLT) já é suficiente para que a coalhada obtida seja frágil. Porém sabemos que grande parte dos queijos é feita com leite pasteurizado, e isso é possível graças a adição de cloreto de Cálcio, que é responsável por repor o cálcio perdido durante o tratamento.
No processo UHT estes efeitos sobre o cálcio são potencializados, sendo este mais um motivo pelo qual um leite ultrapasteurizado não é utilizado na fabricação de queijos.
Esclarecendo alguns mitos
O grupo das vitaminas é bastante citado quando o assunto é tratamento térmico, especialmente por pessoas adeptas do leite cru ou minimamente processado. As alegações são de que os tratamentos pelos quais o leite a na indústria reduz o valor nutricional do leite, principalmente devido a degradação das vitaminas.
Isso não é justificado, uma vez que existe sim uma perda de nutrientes, mas ela não a de 20% para algumas vitaminas, como é mostrado na tabela abaixo.
É importante frisar que, da mesma forma que para os demais compostos, o efeito do tratamento térmico tem efeito cumulativo. Tratamentos mais severos ou sucessivos atuam no aumento das perdas de vitaminas (Como por exemplo ferver o leite que já foi pasteurizado).
E para finalizar, é importante reforçar uma informação: é o tratamento térmico o responsável pelos efeitos no leite, principalmente sobre as bactérias. Vez ou outra ouvirmos falar que é o choque térmico é o que mata as bactérias. Essa explicação não poderia ser mais falsa.
As pessoas acreditam que o resfriamento rápido é uma etapa fundamental no processo, pois do contrário, porque resfriar o leite tão rápido, certo?
Sim, o resfriamento é fundamental, mas pelos motivos que vimos acima. O tratamento térmico leva a morte das bactérias, mas também leva a alterações nos componentes do leite. O resfriamento é necessário para minimizar as alterações no leite, para mantê-lo o mais fresco e integro possível.
Manter o leite em uma temperatura alta após a eliminação dos microrganismos significa estender o tratamento térmico, ou seja, aumentar as modificações que vimos até aqui, culminando em prejuízos sensoriais, nutricionais e no processamento.
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Referências
CORREIA, L. F. M.; FARAONI, A. S.; PINHEIRO-SANT’ANA, H. M. Efeitos do processamento industrial de alimentos sobre a estabilidade de vitaminas. Alim. Nutr., Araraquara, v.19, n.1, p. 83-95, jan./mar. 2008.