A agricultura regenerativa surgiu há mais de 30 anos, em alusão à possibilidade das atividades agrícolas e pecuárias promoverem a recuperação de áreas degradadas, a melhoria dos ambientes produtivos, enfim, a restauração/revitalização de ecossistemas alterados pelas atividades humanas.
Apesar disso, só recentemente, com a intensificação dos efeitos das mudanças climáticas e a pandemia do Covid-19, o termo experimentou um aumento meteórico de interesse público e científico (Fig. 1).
Figura 1. Evolução da ocorrência dos termos agricultura sustentável, agricultura orgânica, agroecologia e agricultura regenerativa.
Fonte: Elaborada pelos autores com base em dados do Web of Science.
Mas afinal, o que é agricultura regenerativa?
Agricultura regenerativa é uma nova modalidade de produção agropecuária? Ou uma visão diferente da produção de alimentos em relação àquela que, após os anos de 1950, amos a chamar de agricultura convencional?
De forma mais simples, a agricultura regenerativa pode ser definida como uma atividade que promove a melhoria do solo por meio do aumento da matéria orgânica, da reciclagem de nutrientes e da atividade da fauna e da microbiota do solo (Fig. 2).
Figura 2. O solo, seus processos e relações com a produção de alimentos.
Fonte: Elaborada pelos autores; adaptada de Wilkinson & Lowery, 1973; Eberle, 2022; FAO, 2022 e Savory Institute, 2022.
Com isso, áreas de terra inerte e predominantemente mineral se transformam em solo ativo e orgânico, com características físicas, químicas e biológicas propícias à vida nas suas diferentes formas, onde tudo começa na produção de alimentos.
Este processo sequestra carbono (C) da atmosfera, contribuindo para a mitigação das mudanças climáticas, geração de renda adicional para os produtores e demais elos das cadeias produtivas (créditos de C, bonificações e subsídios), redução de custos financeiros e abertura de novos mercados.
Uma agricultura que refloresta diferentes ambientes
Em resposta aos problemas de desmatamento, uma vertente importante do movimento ambientalista relaciona a agricultura regenerativa com o plantio de árvores e o florestamento de áreas produtivas. Neste caso, a inclusão da planta e dos efeitos diretos do componente florestal sobre o microclima, ampliam a discussão, contemplando processos que ocorrem no solo, mas também questões relacionadas à eficiência fotossintética, fluxo de nutrientes entre camadas do solo, diversidade vegetal e ciclos hidrológicos (Fig. 3).
Figura 3. As plantas arbóreas, a ciclagem de nutrientes, a otimização do uso de recursos e a diversidade.
Fonte: Elaborada pelos autores; adaptada de Wilkinson & Lowery, 1973; IUCN, 2019; Horta, 2021 e Tewksbury, 2018.
Há de se lembrar, no entanto, que existem árvores e árvores, ambientes e ambientes, ou seja, não se deve sugerir o cultivo de espécies arbóreas sem considerar as características do ambiente. Sua utilização deve levar em conta a adaptação, o uso previsto e a aptidão agrícola da região em questão, sob pena de gerar desequilíbrios ambientais e problemas socioeconômicos ao invés de benefícios.
Uma agricultura que integra produção animal e vegetal para promover a saúde dos ecossistemas
Numa visão mais coerente com a complexidade dos sistemas naturais, cada vez mais a agricultura regenerativa tem destacado a função dos animais como fertilizadores dos diferentes ecossistemas. Neste contexto, a produção animal propicia oportunidades estratégicas de otimização da produção vegetal e vice-versa, incluindo a dinamização de processos naturais (Fig. 4) e a melhoria do uso da terra e demais recursos.
Figura 4. O sistema clima-solo-planta-animal e a mimetização da natureza.
Fonte: Elaborada pelos autores; adaptada de Wilkinson & Lowery, 1973 e Faria, 2022.
Animais de criação, aglomerados e em movimento, promovem a concentração momentânea de dejeções, o crescimento das plantas e a atividade/equilíbrio biológico, com reflexos no controle de pragas e doenças, nos ciclos biogeoquímicos e nas reservas de água disponível, estimulando a melhoria do sistema como um todo.
Um elemento fundamental da agricultura regenerativa é a recuperação da saúde, vitalidade e capacidade evolutiva dos diferentes ecossistemas a partir da interação entre clima, solo, plantas e animais (entre os quais o ser humano).
Como tal, exige uma visão holística da atividade agropecuária, baseada em princípios fundamentais (Fig. 5) que a aproximam de diversas modalidades de produção diferenciada e promovem a convergência de processos entre áreas produtivas e ambientes naturais.
Figura 5. Agricultura regenerativa: princípios fundamentais e relação com outras modalidades de produção agropecuária diferenciada.
Fonte: Adaptada pelos autores de RegenerAgri, 2022.
Em outras palavras, a agricultura regenerativa mimetiza processos naturais por meio da integração de atividades, entre si e com o ambiente, na busca de alimentos saudáveis cuja produção gere ambientes e vidas saudáveis.
Uma “construção” de mais de 10.000 anos
Desde o início da agricultura até os dias atuais, o Homem interage com a natureza provendo meios para sua subsistência. No entanto, sua função como ser vivo, formas de interação e visão dos recursos naturais (e do próprio ambiente) mudaram com o tempo.
De coletor-caçador, ou a observador e produtor de seus alimentos, por meio da domesticação de plantas (diversidade de alimentos frescos) e animais (alimentos mais densos em nutrientes, tração para suas tarefas e fonte de calor), vivendo como parte da natureza (Fig. 6).
Figura 6. O Homem parte da natureza: caça e caçador.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Com o surgimento das grandes civilizações, as obras humanas aram a fazer parte das paisagens de forma integrada com o ambiente. Desde a “construção” de solos férteis, como as terras pretas de índio da Amazônia, às avançadas práticas agrícolas dos Incas e Astecas (Fig. 7), os povos pré-colombianos demonstraram ao mundo como viver em harmonia com a natureza.
Figura 7. As grandes civilizações e o Homem na natureza.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Ao contrário disso, como atestam os registros arqueológicos da cidade de UR (primeira cidade da História), dos Maias ou da Ilha de Páscoa, sempre que o Homem tentou viver desconectado da natureza, a aglomeração, a soberba e o distanciamento levaram à degradação, pestes e extinção. É o que a busca de soluções simples para problemas complexos prenuncia na agricultura atual (Fig. 8).
Figura 8. O Homem e a natureza: desconexão dando origem a problemas.
Fonte: Elaborada pelos autores.
"O problema não é o Homem, é o como"
Técnicas e ferramentas surgem a cada dia para facilitar e otimizar a produção de alimentos. Porém, esquecemos que a natureza nada mais é do que a seleção milenar de processos, materiais genéticos e estratégias culturais mais adaptados às condições do planeta.
Neste contexto, a urbanização, o aumento da população e a falta de alimentos do pós-guerra deram origem ao modelo produtivo hoje dominante, tratado como “convencional”, ao o que a agricultura regenerativa tem sido referida como a “nova agricultura” ou a “agricultura do século XXI”.
Duas questões quase redundantes emergem destas constatações:
- por que em uma atividade de mais de 10.000 anos ou-se a chamar de “convencional” uma modalidade de menos de 100 anos?
- como uma atividade resultante de uma consolidação de mais de 10.000 anos pode ser considerada “nova”?
“Nova” ou não, uma coisa é certa: jamais na História o Homem teve tantas condições para ocupar com pertinência o centro das decisões produtivo-ambientais (Fig. 9).
Figura 9. O Homem e suas tecnologias: condições nunca vistas para fazer a diferença.
Fonte: Adaptada pelos autores de Milkpoint, 2022.
O Homem no centro da regeneração (ou da degradação)
Se a agricultura regenerativa é o resultado de séculos de aprendizado humano, de erros e acertos, que nos permitiram entender que é possível viver em harmonia com os demais seres vivos e aportar melhorias ao ambiente, o que esta modalidade traz de novo em termos produtivo-ambientais?
As práticas produtivas e características que definem seus princípios são, na grande maioria, consagradas e muito semelhantes às encontradas em outras modalidades de produção. No entanto, a relação da atividade produtiva com o ambiente e sua perspectiva de impacto é totalmente diferente.
Ao o que a agricultura sustentável interage com o ambiente buscando reduzir o uso de recursos e demais impactos, a regenerativa busca integrar a atividade produtiva ao ambiente, incentivando a expressão de processos naturais em uma perspectiva de restauração dos ecossistemas e melhoria contínua de seu funcionamento (Fig. 10).
Figura 10. Perspectivas produtivas: degradar, manter ou regenerar?
Fonte: Adaptada pelos autores de Mang & Reed, 2013.
Oportunidades e desafios da “corrida” regenerativa
A possibilidade das atividades humanas arem de potenciais degradadoras do meio ambiente a recuperadoras e fontes de oportunidades mútuas é extremamente estimulante, sobretudo, na atual situação de agravamento das mudanças climáticas.
O ideal “sustentável” simplesmente não é mais suficiente. Empresas globais e organizações sem fins lucrativos estão dando cada vez mais visibilidade para a “restauração” por meio da produção de alimentos. Este entusiasmo e engajamento tem um potencial ecossocial positivo para produtores rurais, consumidores e empresas, trazendo consigo o risco de deturpação, banalização e/ou fragmentação do termo.
O que falta para este movimento se tornar uma realidade planetária?
Falta assumirmos que só temos um planeta, com particularidades regionais, necessidades básicas semelhantes e conexões continentais de ordem social, econômica e ambiental. Nossos desafios exigem, portanto, ações conjuntas e mudanças de mentalidade.
Conhecer as diferentes formas de interação do ser humano com a natureza, particularmente, na produção de alimentos é fundamental. Neste sentido, a contribuição potencial da agricultura regenerativa não está nem perto de ser alcançada.
Não se trata somente de agricultura! Trata-se de deixar de viver da natureza para viver com a natureza! Faça sua parte!
Sobre o Instituto de Agricultura Regenerativa
O Instituto de Agricultura Regenerativa é uma associação privada, sem fins lucrativos, engajada na consolidação de um novo paradigma: a produção de alimentos saudáveis, ricos em nutrientes e sem resíduos de substâncias tóxicas pode promover a restauração de processos e relações naturais, gerando benefícios socioeconômicos e ambientais. Como tal, seus efeitos se assemelham ao que ocorre em ambientes naturais, onde os diferentes indivíduos interagem, de forma sinérgica e complementar.
Sem deixar de reconhecer a contribuição de práticas como o preparo mínimo do solo e o uso de culturas de cobertura em substituição aos agrotóxicos como contribuições efetivas da agricultura orgânica, a agricultura regenerativa dá um o à frente: incorpora uma abordagem holística da produção agrícola, embasada em princípios de hierarquia ecológica e práticas conservacionistas. Com isso, regeneração, manutenção e aumento da resiliência da produção de alimentos se aliam à melhoria da qualidade de vida de produtores e consumidores de alimentos, tanto do meio rural como de grandes aglomerações urbanas. Mais informações, e o site.
Colaboraram para esta publicação:
Marcelo Abreu da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Ecoetologia.
Milene Dick - Médica Veterinária, Mestre em Agronegócios e Doutora em Zootecnia.
Rickiel Rodrigues Franklin da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia.
Sebastião Ferreira de Lima - Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia e Doutor em Fitotecnia.
Cícero Célio de Figueiredo - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.
Ana Paula Ott - Bióloga, Mestre em Biociências (Zoologia) e Doutora em Fitotecnia.
Maria do Carmo Both - Médica Veterinária, Mestre e Doutora em Zootecnia.
Rualdo Menegat - Geólogo, Mestre em Geociências e Doutor em Ecologia.
João Carlos Gonzales - Médico Veterinário, Mestre e Doutor em Ciências Veterinárias.
Homero Dewes - Farmacêutico, Mestre e Doutor em
Referências
Eberle, U. 2022. Life in the soil was thought to be silent. What if it isn’t? Knowable Magazine.Faria, G.R. 2022. Resposta imunológica de novilhas Nelore é maior em sistemas ILPF. Notícias Embrapa.
FAO. 2022. Global Symposium on Soils for Nutrition. Virtual event.
Horta, A.L. 2021. A floresta em pé traz ganhos financeiros, e quem diz isso é a ciência.
IUCN. 2019. Conserving healthy soils. Issues Brief.
Milkpoint, 2022. Disponível em: /artigos/producao-de-leite/conhecimentos-de-precisao-como-economizar-muito-dinheiro-na-pecuaria-leiteira-229816/
Mang, P., Reed, B. 2013. Regenerative Development and Design. In: Loftness, V., Haase, D. (eds) Sustainable Built Environments. Springer, New York, NY.
RegenerAgri. 2022. Disponível em: https://www.regeneragri.com/.
Savory Institute. 2022. Disponível em: https://savory.global/.
Tewksbury, J. 2018. All forests are not equal in the carbon count. Anthropocene.
Wilkinson, S.R., Lowery, R.W. 1973. Cycling of mineral nutrients in pasture ecosystems. In: Chemistry and biochemistry of herbage. Academic Press. 247-315.