Não é novidade que a grande maioria dos produtores de leite no Brasil trabalha com sistemas à base de pasto, ou pelo menos, com vacas soltas, não confinadas.
Leite a pasto no Rio Grande do Sul
No Rio Grande do Sul, por exemplo, dados da EMATER/RS (2021) indicam que, cerca de 90% dos produtores trabalham em sistema à base de pasto. Porém, raramente se produz leite exclusivamente à pasto em solo gaúcho. Por isso esse relatório considera “à base de pasto” os sistemas em que os animais ficam livres durante o dia, com o à pastagem, embora possam receber algum tipo de alimentação em algum tipo de instalação, após as ordenhas.
E é justamente sobre essa suplementação no cocho que pretendo discutir nesse artigo. O mesmo relatório da EMATER/RS (2021), informa que outra estratégia para alimentação do rebanho que também é muito usual nas propriedades leiteiras do RS é a silagem, presente em 90% das propriedades.
É importante observar que a classificação não leva em conta qual o alimento predominante na dieta dos animais ou o percentual de participação do pasto na dieta para ser caracterizado como à base de pasto, mas sim, o tempo em que os animais ficam soltos durante o dia e o simples o ao pasto.
A própria legislação ambiental do Rio Grande do Sul (RS), na mesma linha, a partir da resolução 372/2018 do CONSEMA/RS, considera esse tipo de criação onde os animais permanecem soltos, mas que podem ser presos até 6 horas por dia em alguma construção apropriada, como sistema extensivo. 6 horas então, é o tempo de corte, a partir do qual um sistema a a se configurar como semi-intensivo ou semiconfinado. Nesse tempo de até seis horas, portanto, o sistema de produção “à base de pasto” no RS inclui suplementação com alimentos como a silagem ou a ração concentrada para os animais.
Migração para outros sistemas ou abandono da atividade?
É justamente nesse sistema de produção, predominante no Estado, que ocorre a maior diminuição do número de produtores nos últimos anos, conforme mostra o gráfico abaixo:
Gráfico 1: Distribuição do nº de produtores de acordo com o sistema produtivo.
Fonte: elaborado pelo autor a partir de dados da EMATER/RS, 2021.
Ao contrário do que se imagina, não é que os produtores estejam migrando do sistema à base de pasto para sistemas confinados ou semi. Apenas uma pequena parte está indo para os sistemas confinado e semiconfinado, mas esses não estão absorvendo o número de produtores que sai do “à base de pasto”.
No período de 2017 a 2021, o número de produtores no sistema “à base de pasto” reduziu 42%, o que significa, numericamente, mais de 26 mil produtores, enquanto que, o aumento nos sistemas confinados e semi foi de apenas 870 produtores.
Portanto, não é correto usar o argumento de que os produtores estão migrando para sistemas mais intensivos, quando, para cada produtor que migrou para outro sistema, temos 30 do “à base de pasto” que abandonaram a bovinocultura leiteira. O que está ocorrendo e, que mostram os dados, é a exclusão dos produtores do sistema classificado como à base de pasto da atividade leiteira.
Em tempos de agenda ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa, do inglês “Environmental, Social and Governance”), ou da busca pela sustentabilidade (que, em seu conceito básico, envolve os aspectos ambiental, econômico e social), não é razoável analisar os dados e excluir o fator “social” - presente em ambos os conceitos.
Dessa forma, analisando o aspecto social, não se pode considerar que, apesar da diminuição do número de produtores do sistema à base de pasto, eles estão sendo compensados pelo aumento de escala dos produtores que migram de sistema (em rebanho e produção de leite) e, então, desconsiderar o problema social que a exclusão de produtores de uma atividade tradicionalmente da agricultura familiar causa.
É preciso olhar criteriosamente para o sistema à base de pasto para tentar compreender o que está acontecendo que ele não está parecendo atrativo à grande parte dos produtores e, assim, tratar o problema da exclusão de produtores da atividade leiteira com assertividade.
Leite à base de cocho com vacas soltas
Para analisar a situação enfrentada pelos produtores no sistema à base de pasto, a figura abaixo sintetiza uma possível explicação do que acontece no campo, onde os bovinocultores encontram, basicamente, dois caminhos como alternativas para o seu futuro em relação à atividade leiteira:
Figura 1. Caminhos ofertados aos produtores de leite tradicionais no RS.
Fonte: Ebert, 2023.
Na pressão por sistemas mais intensivos e mais eficientes, poucos encontram soluções que não necessitem de grandes investimentos ou dependência do cocho. Alguns, investem e migram para sistemas mais intensivos (1 para cada 30 que desiste - conforme os dados que vimos anteriormente).
Como a maior parte dos produtores não tem condições ou não planeja investir em infraestrutura para confinar, pelos mais diversos motivos, acabam pegando o caminho de desistir da pecuária de leite.
Dos que tentam sobreviver e permanecer na atividade sem fazer esses investimentos, encontram, basicamente, soluções que envolvem trato no cocho, como dietas de mais ração, mais silagem ou outros alimentos, naquelas horas de trato nas instalações, após as ordenhas, visto que eles não têm instalações adequadas, com camas, para manter os animais por mais tempo presos e aplicar uma dieta de confinamento.
E, assim, cada vez mais produtores do sistema “à base de pasto”, continuam com as vacas soltas, mas, em vez de apenas incluir “suplementação com alimentos como a silagem e ração concentrada” em seus sistemas, estão com a alimentação cada vez mais similar às de confinamento, tornando o cocho como base da dieta, ao mesmo tempo em que o o ao pasto se torna uma espécie de "bônus" (quando tem, melhor, dá mais leite), mas não como base da dieta dos rebanhos.
Isso implica que, nesses casos, estamos trabalhando com modelos de sistemas de produção com dietas baseadas no cocho (como EUA e Europa, por exemplo), porém, sem confinar os animais: o “leite à base de cocho com vacas soltas”. O que descaracteriza o sistema como um verdadeiro “leite à base de pasto com suplementação”, perdendo a lógica de custos mais baixos de sistemas baseados em pasto e, como consequência, leva a custos de alimentação similares a esses modelos confinados.
Era de se esperar que, com esse modelo de alimentação mimetizando os confinamentos, alcançássemos a produtividade que eles alcançam. Porém, como resultado desse “sistema à base de cocho com vacas soltas”, a produtividade por vaca do RS, dos produtores que ficaram na atividade em 2021, de acordo com o relatório da Emater/RS era de apenas 4.129 l/vaca/ano, ou 13,5 l/vaca/dia.
Isso significa que, além de estarmos trabalhando com custos de alimentação mais similares a modelos de confinamentos, estamos com produtividade de modelos baseados em pasto (como Nova Zelândia, Austrália e Uruguai), os quais, por sua vez, mantém a lógica de custos mais baixos.
Com custos de alimentação mais próximos de confinamentos e produtividade de base pasto, seria surpreendente se as contas fechassem. Também seria surpreendente se esses produtores estivessem satisfeitos e motivados com a atividade, em vez de abandonando-a de vez. Sendo assim, não é preciso dizer que a estratégia, talvez involuntária, de produzir "à base de cocho com as vacas soltas" não está dando certo.
Um terceiro caminho para a bovinocultura leiteira familiar
Considerando esse cenário, um caminho que parece que está sendo oferecido apenas para poucos, que não chega à maior parte dos produtores, é um “verdadeiro sistema de produção de leite à base de pasto com suplementação”, em vez do atual “base de cocho com vacas soltas”. Sistemas eficientes de alto consumo de pasto, com altas produtividades, utilizando os recursos e a estrutura que a família já tem - portanto, sem grandes investimentos - aproveitando o maior benefício dos sistemas à base de pastagens, que é o menor custo.
Há tecnologia para um terceiro caminho nesse sentido, para além de desistir ou investir.
As técnicas e o conhecimento sobre pasto evoluíram muito nos últimos anos. Temos programas de melhoramentos de pastagens oferecendo variedades excelentes, técnicas de manejo de solos, de manejo das pastagens, de bem-estar animal e de nutrição, além de todas as que já são aplicadas ao cocho que podemos usar para produção e uso de forragens conservadas e concentrados de forma estratégica e elevar o potencial produtivo dos rebanhos.
Há diversos exemplos de produtores que conseguem obter bons resultados em suas propriedades em sistema à base de pasto com suplementação e estão satisfeitos com a atividade. Infelizmente, parece que há alguma falha, no entanto, que esses conhecimentos não chegam ao grande público, ou, ao menos, não são aplicados em larga escala.
O o a essas tecnologias pode diminuir o número de produtores que abandonam a bovinocultura leiteira. É preciso que isso chegue cada vez mais ao maior número de produtores, para que se possa frear esse quadro de abandono da bovinocultura de leite pelos produtores e, que se torne um abandono apenas do sistema “à base de cocho com vacas soltas”.
Referências:
EMATER. Rio Grande do Sul/ASCAR. Relatório socioeconômico da cadeia produtiva do leite no Rio Grande do Sul: 2021. Porto Alegre, RS: Emater/RS-Ascar, 2021. 98 p. Disponível em http://biblioteca.emater.tche.br:8080/pergamumweb/vinculos/000007/000007bb.pdf o em 12 Abr. 2023.
RIO GRANDE DO SUL. Resolução CONSEMA nº 372, de 22 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre os empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, íveis de licenciamento ambiental no Estado do Rio Grande do Sul, destacando os de impacto de âmbito local para o exercício da competência municipal no licenciamento ambiental. Disponível em: https://www.sema.rs.gov.br//arquivos/202112/23105618-consema-372-2018-atividades-licenciavies-municipios.pdf o em 12 Abr. 2023.