A emergência climática global posicionou a sustentabilidade no centro das discussões sobre produção e consumo de alimentos. A cadeia produtiva do leite, reconhecida por sua significativa contribuição às emissões de gases de efeito estufa (GEE), enfrenta uma pressão crescente por práticas mais responsáveis.
Nesse cenário, o Leite Carbono Neutro ou de Baixo Carbono emerge como uma proposta inovadora e necessária, representando sistemas que buscam ativamente reduzir e/ou neutralizar seu balanço de carbono. Essa tendência não é apenas ambiental, mas mercadológica, impulsionada por consumidores cada vez mais informados e exigentes quanto à origem e ao impacto dos produtos que adquirem, como apontam diversas pesquisas sobre comportamento do consumidor (NIELSENIQ, 2022).
QUADRO 1 - Práticas para redução de emissões de GEE na produção de leite e seus respectivos impactos e desafios.
Prática Sustentável |
Impacto Potencial |
Desafios para Implementação |
Melhoramento genético do rebanho |
Aumento da eficiência produtiva e redução de emissões por litro de leite |
Alto custo inicial e tempo prolongado para retorno |
Manejo nutricional de precisão |
Redução da produção de metano entérico e maior conversão alimentar |
Necessidade de assistência técnica e insumos específicos |
Integração Lavoura-Pecuária (ILP) |
Sequestro de carbono no solo e aumento da resiliência climática |
Requer planejamento integrado e capacitação técnica |
Uso de biodigestores para dejetos |
Geração de energia renovável e redução de emissões de GEE |
Alto investimento inicial e demanda por manutenção contínua |
Pastejo rotacionado e manejo adequado do pasto |
Sequestro de carbono, controle da erosão e aumento da produtividade |
Requer conhecimento técnico e mudanças nos hábitos de manejo |
Compostagem de resíduos orgânicos |
Redução de emissões de metano e valorização de resíduos |
Demanda estrutura adequada e mão de obra qualificada |
Certificações ambientais e rastreabilidade |
Agregação de valor ao produto e o a mercados diferenciados |
Burocracia, custo e necessidade de auditorias periódicas |
Monitoramento e pegada de carbono na propriedade |
Diagnóstico para tomada de decisão sustentável |
Falta de ferramentas íveis e de conhecimento técnico especializado |
Fonte: Adaptado da FAO, (2023) e EMBRAPA, (2021).
Práticas estratégicas para reduzir emissões na pecuária brasileira
O Brasil, detentor de um dos maiores rebanhos comerciais e posicionado entre os líderes mundiais na produção de leite, encontra-se em uma encruzilhada estratégica. Se por um lado a pecuária extensiva tradicional é fonte de emissões, por outro, a capacidade de adotar sistemas integrados, como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), confere ao país um potencial imenso para o sequestro de carbono.
A Embrapa Gado de Leite tem sido pioneira ao desenvolver protocolos e a marca-conceito Leite Carbono Neutro, que valida sistemas onde a presença de árvores e o manejo adequado do solo compensam as emissões do rebanho, sinalizando um caminho promissor para o setor (ALMEIDA et al., 2017).
Atingir um balanço de carbono favorável envolve um conjunto robusto de práticas que vão além da integração com florestas. O manejo de dejetos é um ponto crítico, a adoção de biodigestores anaeróbios, por exemplo, não só evita a liberação de metano (CH4), um potente GEE na atmosfera, como também gera biogás como fonte de energia renovável e biofertilizantes ricos em nutrientes. Essa tecnologia transforma um ivo ambiental em múltiplos ativos, contribuindo para a economia circular e a autossuficiência energética das propriedades (KUNZ; STEINMETZ; AMARAL, 2020).
Outro pilar essencial é a nutrição animal. O metano emitido pela fermentação entérica (arroto dos bovinos) é uma das principais fontes de GEE na pecuária (Figura 1). Pesquisas avançam na identificação e no uso de aditivos alimentares (como taninos, óleos essenciais e compostos sintéticos) e na formulação de dietas mais eficientes, que podem reduzir significativamente essas emissões sem comprometer a saúde ou a produtividade do rebanho. A seleção de ingredientes e o balanceamento preciso da dieta são ferramentas-chave para uma pecuária mais limpa (ABDALLA; SILVA FILHO; GODOI, 2014).
FIGURA 1 - Emissões de gases de efeito estufa por vacas leiteiras.
Fonte: CAMPOS; PEDROZA; SANT'ANNA, (2022).
Manejo do solo e melhoramento genético
A saúde e o manejo do solo são fundamentais para o sequestro de carbono. Pastagens bem manejadas, com rotação adequada, correção e adubação equilibradas, evitam a degradação e promovem o acúmulo de matéria orgânica, que é rica em carbono. Práticas conservacionistas, como o plantio direto (quando aplicável em sistemas integrados) e a manutenção da cobertura do solo, protegem contra a erosão e maximizam o potencial do solo como um dreno de carbono atmosférico, sendo um componente vital para a neutralização das emissões (CERRI et al., 2016).
Não se pode subestimar a importância do componente genético. O melhoramento genético focado não apenas em produtividade, mas também em eficiência alimentar e, potencialmente, em menor emissão de metano por unidade de produto, é uma estratégia de longo prazo com impactos cumulativos. Animais mais eficientes convertem melhor os alimentos em leite, reduzindo a pegada de carbono por litro produzido e otimizando o uso dos recursos naturais (VERNEQUE; CARVALHO; LOPES, 2013).
Desafios e oportunidades para o leite carbono neutro
Apesar do potencial, a operacionalização do Leite Carbono Neutro enfrenta o desafio da Mensuração, Reporte e Verificação (MRV). Calcular com precisão o balanço de carbono de uma fazenda é complexo e exige metodologias padronizadas e auditáveis. Iniciativas como o GHG Protocol adaptado ao Brasil e os dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) fornecem bases importantes, mas a aplicação em nível de propriedade ainda requer simplificação, custos íveis e, principalmente, credibilidade para evitar acusações de greenwashing (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2023).
A transição para esses sistemas implica custos iniciais que podem ser proibitivos para muitos produtores, especialmente os pequenos e médios. O investimento em árvores, cercas, biodigestores, assistência técnica e certificação exige capital e tempo para maturação. Sem mecanismos de financiamento adequados, políticas de incentivo e a garantia de um prêmio de mercado pelo leite sustentável, a adoção em larga escala fica comprometida. A análise econômica precisa demonstrar o valor agregado e o retorno financeiro dessas práticas (MARTHA JÚNIOR et al., 2011).
O engajamento da indústria e do varejo é vital para impulsionar o mercado. Grandes empresas de laticínios já começam a desenvolver programas de fomento à pecuária de baixo carbono em suas bacias leiteiras, respondendo a demandas de investidores e consumidores. A criação de linhas de produtos com selos de sustentabilidade visíveis nas gôndolas e a comunicação transparente sobre os benefícios ambientais são essenciais para construir esse novo nicho de mercado e educar o consumidor (NESTLÉ, 2021).
Finalmente, o papel do Estado é insubstituível. O Plano ABC+ (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono) é a principal política pública brasileira nesse sentido, oferecendo crédito e diretrizes. No entanto, sua efetividade depende de sua capilaridade, da agilidade na liberação dos recursos e de sua integração com outras políticas de assistência técnica e extensão rural.
O fortalecimento e a contínua atualização desse plano são fundamentais para que o Brasil realize seu potencial de se tornar um líder global na produção de leite sustentável, de baixo carbono e, eventualmente, neutro em emissões (BRASIL, 2021).
Autores
Stefany Cristiny Ferreira da Silva Gadêlha
Diego Micheli Sousa Gomes
Marciel Oliveira Santos
Franklin Chidi Okwara
Marco Antônio Pereira da Silva
Agradecimentos
Ao Centro de Excelência em Bioinsumos (Cebio), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo n. 303505/2023-0), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e IF Goiano - Campus Rio Verde pelo apoio à realização da pesquisa.
Referências bibliográficas
ABDALLA, A. L.; SILVA FILHO, J. C.; GODOI, A. R. Metano Entérico na Pecuária. Revista Brasileira de Zootecnia, v. 43, p. 574-583, 2014.
ALMEIDA, R. G. de; et al. Leite Carbono Neutro: um novo conceito de produção sustentável. Embrapa Gado de Leite, (Circular Técnica, 116), 2017.
BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano Setorial para Adaptação à Mudança do Clima e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária (Plano ABC+) 2020-2030. Brasília: MAPA, 2021.
CAMPOS, Mariana Magalhães; PEDROZA, Maria Guilhermina; SANT'ANNA, Aline Cristina. Vacas mais calmas emitem menos metano. Revista Leite Integral, 2022. Disponível em: https://www.revistaleiteintegral.com.br/noticia/vacas-mais-calmas-emitem-menos-metano.
CERRI, C. C.; et al. Brazilian agriculture: the potential of soil carbon sequestration. Scientia Agricola, v. 73, n. 1, p. 69-79, 2016.
EMBRAPA. Rumo à pecuária de baixo carbono: práticas e tecnologias para reduzir emissões de gases de efeito estufa na produção animal. Brasília, DF: Embrapa, 2021. Disponível em: https://www.embrapa.br. o em: 28 maio 2025.
FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. Pathways to lower emissions: A global assessment of GHG emissions and mitigation options from livestock agrifood systems. Rome: FAO, 2023. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc8277en. o em: 28 maio 2025.
KUNZ, A.; STEINMETZ, R. L. R.; AMARAL, A. C. do. Potencial da Geração de Biogás na Bovinocultura de Leite na Região Sul do Brasil. Embrapa Suínos e Aves, (Comunicado Técnico, 574), 2020.
MARTHA JÚNIOR, G. B.; et al. Análise econômica da intensificação sustentável da produção em pecuária de corte. Embrapa Cerrados, (Boletim de Pesquisa e Desenvolvimento, 298), 2011.
NESTLÉ. Nestlé avança em agricultura regenerativa no Brasil e anuncia primeiras fazendas de leite com neutralização de carbono até 2022. Nestlé Brasil, [Press Release], 08 dez. 2021.
NIELSENIQ. Sustainability: The new consumerism. NielsenIQ, [Report], 18 May 2022.
OBSERVATÓRIO DO CLIMA. SEEG 11: Uma década de emissões de GEE no Brasil. Observatório do Clima, 2023.
VERNEQUE, R. S.; CARVALHO, L. A.; LOPES, M. A. Melhoramento genético do gado de leite no Brasil. In: Anais do Simpósio Brasileiro de Melhoramento Animal. Uberaba, 2013.