Comecemos pelo lado favorável. O preço recebido pelo produtor está estável desde maio de 2006, não caiu nesse pico de safra e nada indica que irá cair nos próximos meses. Por outro lado, a inflação é mantida em níveis baixos. O custo de vida das famílias subiu cerca de somente 3,1% ao longo de 2006, o que significa dizer que o poder de compra do consumidor tem se mantido. E nada sinaliza com a volta da inflação. Isso é de extrema importância para a cadeia do leite. Some-se a isso o fato do leite em pó estar sendo comercializado a US$ 3 mil, quando esteve entre US$ 2,1 mil e US$ 2,3 a tonelada até setembro de 2006. Há ainda o fato dos projetos de novas plantas anunciados no início de 2006 estarem de "vento em popa", ou seja, estão sendo executados. Portanto, o ambiente não é dos piores.
Estudo o setor lácteo desde 1983 e aprendi que o setor tem um comportamento previsível. Quando uma crise se instala, se o problema é percebido como de cunho estrutural, soluções estruturais são buscadas. Um exemplo é a primeira metade dos anos noventa, quando saímos de uma economia fechada (com restrições a importação) e com tabelamento de preços e fomos para economia aberta e sem tabelamento. A competente reação do setor se deu com a introdução dos conceitos de logística, o que permite que hoje possamos falar efetivamente em cadeia produtiva do leite. Mas, se o problema é considerado de cunho conjuntural, o setor se reúne, propõe mudanças de impacto e... é só melhorar o cenário que cada um vai cuidar de sua vida.
A crise do segundo semestre de 2005 não foi conjuntural, como muitos imaginam. Portanto, não é possível esquecê-la, imaginando que tudo está voltando ao normal. Tenho quatro motivos para considerar que estamos vivendo uma crise estrutural: a) acabou o espaço para substituição de importação no setor lácteo; b) a população cresce menos e está ficando velha; c) o Brasil não terá crescimento elevado de renda per capita nos próximos anos; e, d) o brasileiro não gosta de leite. Vejamos cada um desses motivos, em detalhe.
Motivo 1. Acabou espaço para substituição de importação
Os países que se industrializaram somente no século ado, como o Brasil, adotaram políticas de substituição de importação. A receita é simples e é de cunho protecionista. Cria-se legislação que dificulte importações, impostos vultosos am a incidir sobre os produtos estrangeiros e a moeda nacional é desvalorizada. Além disso, subsídios à indústria nascente são oferecidos. A implantação da indústria automobilística no Brasil é um exemplo típico. No caso do leite, tivemos uma substituição de importação surrealista, que foge completamente a esta receita básica. Um caso raríssimo. Fizemos substituição de importação via mercado, enquanto que o tradicional é via ação protecionista de Governo. Em vez de proteção do Estado, foi a competição que levou a esta substituição de importações.
Em 1991 o Governo deixou de tabelar o preço do leite. De 1991 até 2005 a produção brasileira cresceu 60%, mas a população cresceu 23,5% e o poder aquisitivo de cada brasileiro cresceu 19,5%, ou 1/3 do crescimento do consumo. Isso fez com que abrisse um fosso entre o crescimento da produção e do consumo per capita, conforme mostrado no Gráfico 1. As diferentes taxas de crescimento fizeram com que, gradativamente, a produção per capita e o consumo per capita fossem se aproximando, conforme o Gráfico 2, até que empataram, a partir de 2004. Portanto, a organização da cadeia produtiva do leite nos anos noventa levou a uma substituição de importações e a uma auto-suficiência nacional. Mas, pelo Gráfico 1, a partir de agora, o cenário é excedente de leite, ou seja, a produção deverá superar o consumo.
Gráfico 1. Produção de Leite e PIB Per Capita em percentagem. Brasil. 1991 - 2005.

Fonte: dados organizados pelo autor.
Obs: 1991: base = 100
Gráfico 2. Produção Per Capita e Consumo Per Capita de Leite. Brasil. 1980 -2005.

Fonte: dados organizados pelo autor.
Motivo 2. A População Crescerá Menos e Ficará Velha rapidamente
O IBGE informa que em 1.985 o Brasil tinha uma população de 133 milhões e o crescimento populacional era de 2,1% ao ano. Em 2.005, já éramos 184 milhões, mas a taxa de crescimento da população caiu para 1,4% ao ano. Para 2.025 o IBGE prevê que seremos 229 milhões, mas a população estará crescendo a 0,8% ao ano. Portanto, daqui a vinte anos a população brasileira estará crescendo a uma taxa três vezes menor que o crescimento de vinte anos atrás. A conseqüência é que a população está ficando velha. Em 1.985, 49,7% da população brasileira tinha até 19 anos de idade. Isso mesmo! A cada dois brasileiros, um era adolescente. Em 2.025 o percentual dessa faixa etária cairá para 30,4%. Já o percentual de brasileiros com idade acima de 60 anos, que era de 6,1% em 1985, subirá para 15,1%.
A idade média da população, em quarenta anos, sairá de 19 anos para 33 anos. Esse envelhecimento deverá impactar negativamente o consumo per capita de leite. Primeiro, porque o jovem tem maior propensão ao consumo que qualquer outra faixa etária. Segundo, porque, em nossa cultura, leite é consumo de pessoas da primeira idade. No imaginário coletivo, é muito mais um produto ligado à visão clássica de saúde e nutrição que a um produto saboroso e de prazer. Talvez isso explique o fato de, em eventos, os "milk-breaks" se colocar como momentos de consumo de café e suco em maior quantidade que os produtos lácteos em geral fartamente disponíveis.
Motivo 3. O Brasil continuará a ter crescimento econômico baixo
Em 2.005 o Brasil teve o segundo pior desempenho econômico entre todos os países da América Latina, ao crescer apenas 2,3%. Em 2.006, a colocação de segundo pior voltou a se repetir. Pior que o desempenho brasileiro, somente o do combalido Haiti. O crescimento brasileiro, medido pelo PIB - Produto Interno Bruto tem sido cerca da metade do crescimento econômico mundial e quatro vezes menos que o crescimento da China.
Para que haja crescimento elevado, é necessário que a taxa de investimento do país seja compatível, ou seja, também elevado. Na Tabela 1 estão relacionados os comportamentos do investimento (público e privado) e do PIB brasileiro desde 1991. Em 15 anos, nunca o crescimento do investimento em relação ao ano anterior superou a 3%. Ao contrário, nessa série histórica foram sete os anos em que a variação foi negativa. Já o crescimento do PIB, somente em seis anos ultraou esta taxa percentual.
A política econômica brasileira tem buscado manter a inflação em patamares baixos. Para tal, há mais de uma década procura manter os juros elevados e busca obter superávit nas contas do Governo. Estes procedimentos inibem investimentos públicos e privados. Em função disso, o percentual do investimento brasileiro total em relação ao PIB não ultraa a 20%, enquanto que na China está próximo a 50%.
Esse quadro não deverá ter substancial modificação. Se tivesse, ainda teríamos o grave problema de restrição ou falta de capacidade ociosa em infra-estrutura, representada por carência de energia elétrica e infra-estrutura de logística, além da elevada carga de tributos. Tudo isso é inibidor do crescimento. Portanto, como supor que o país crescerá a taxas acima de 3%, de modo contínuo? E, se não cresce, como supor que haverá grande elevação no consumo per capita de leite?
Tabela 1. Percentual de crescimento do Investimento e do PIB. Brasil 1991 - 2005.

Fonte: Ipea (2007)
Motivo 4: O brasileiro não gosta tanto de leite
Ao contrário do que se diz, o brasileiro não gosta de leite. Ou, gosta menos que de outros bens e serviços. Dois pesquisadores da Embrapa Gado de Leite resolveram trabalhar os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE. Concluíram que uma família com renda mensal até R$ 1.200,00, caso tenha uma elevação de 100% na sua renda, aumentaria seus gastos com leite e derivados em somente 54%. Para a faixa de renda familiar entre R$ 1.200,00 e R$ 3.000,00, o comprometimento adicional com a renda duplicada seria de 48,5%, somente. Acima de R$ 3.000,00, o percentual é de 37,9%. Portanto, se o brasileiro efetivamente gostasse tanto de leite como se imagina, com uma renda se elevando em 100%, era de se esperar que elevasse em pelo menos 100% o seu consumo de lácteos. Os resultados demonstram, contudo, que o acréscimo aos gastos com aquisição de leite é menos que proporcional ao aumento da renda. E não se pode nem alegar que isso ocorre em função da saturação de consumo de leite, pois o brasileiro consome, em média, a metade do consumo médio per capita verificado nos países desenvolvidos.
Considerando-se que a produção cresce mais que o consumo; que a quantidade produzida é igual à quantidade consumida, que a população está crescendo a taxas menores e está envelhecendo, que a renda per capita não deverá crescer substancialmente nos próximos anos e que o brasileiro não gosta tanto de leite, somente é possível imaginar que o futuro nos reserva um grande excedente interno de leite. Numa estimativa conservadora, encontrei excedente de 5,6 bilhões de litros para 2.025.
No próximo artigo apresentarei e discutirei estes dados.