Você já se perguntou por que algumas muçarelas não fatiam tão bem quanto outras? Pois bem, este é um assunto que gera discussões entre indústria, queijeiros e supermercados que ao receber uma muçarela que trinca ou racha ao fatiar, abrem reclamações contra seus fornecedores.
A resposta para essa pergunta não é simples, pois a produção desse queijo, diga de agem, bem apreciado e amplamente consumido (especialmente em pizzas), é complexo e que demanda atenção desde a seleção do leite até a comercialização.
Enquanto em diversos países a muçarela é tradicionalmente ralada ou moída para utilização culinária, no Brasil, a preferência ainda recai sobre fatias perfeitamente cortadas. Contudo, esse hábito enfrenta desafios, evidenciados por um problema recorrente: a má fatiabilidade da mussarela.
Neste contexto, este artigo visa desvendar as diversas causas desse fenômeno, que podem atuar de maneira isolada ou combinada, explorando desde o teor de gordura e umidade até fatores cruciais como temperatura de filagem, pasteurização do leite, tipo de coalho e fermento lático. Ao entender esses elementos, os consumidores e produtores poderão aprimorar a qualidade desse queijo tão presente em nossa culinária, proporcionando experiências gastronômicas mais satisfatórias e consistentes.
Excesso de gordura e temperatura de pasteurização
O equilíbrio entre a quantidade de gordura na muçarela e o rigor na pasteurização do leite emerge como uma combinação crítica que impacta diretamente na capacidade do queijo de fatiar adequadamente. O excesso de gordura, muitas vezes derivado da utilização de leite cru integral, pode resultar em um elevado teor de GES (gordura no extrato seco), comprometendo a estrutura da muçarela.
É recomendável buscar um equilíbrio que permita ao queijo apresentar aproximadamente 21% a 22% de gordura (ou cerca de 40% a 42% de GES). Para atingir esse objetivo, é aconselhável determinar o teor de caseína do leite e estabelecer a relação Caseína/Gordura (C/G) ideal. Normalmente, utiliza-se leite com gordura variando de 2,8% a 3,1% e considerando um teor médio de 2,20% de caseína no leite, a relação C/G ideal fica em torno de 0,74.
No Brasil, o teor médio de caseína no leite (aproximadamente 2,20%) é notavelmente inferior ao observado em países como a Argentina (cerca de 2,60%) ou na União Europeia (cerca de 2,60%). Essa consideração é crucial, pois o teor de gordura influencia significativamente não apenas na fatiabilidade, mas também em propriedades funcionais como o "oiling off" (separação da gordura – Figura 1) (FURTADO, 2016).
Foto 1. Separação de gordura ou “oiling off” em pizza
Fonte: Macalé.
Ao mesmo tempo, a temperatura de pasteurização desempenha um papel crucial, influenciando a integridade das proteínas do leite. Na produção de muçarela a temperatura não deve exceder 72°C (por 15 segundos), embora muitas fábricas optem por 75°C. A elevação da temperatura, ou o seu prolongamento do tempo para além de 15 segundos, resulta na desnaturação das proteínas do soro, como alfa-lactoalbumina e beta-lactoglobulina, que se integram à coalhada, ampliando a retenção de água e de coalho (acelerando o processo de maturação), o que afeta o rendimento e a fatiabilidade do produto (FURTADO, 2005).
Temperatura elevada de filagem e alta umidade
A relação entre a temperatura de filagem e a umidade desempenha um papel crucial na textura da muçarela. Durante a filagem da massa, à medida que a temperatura ou a quantidade de água quente aumenta, a consistência da massa tende a se tornar mais mole, e a a reter mais umidade.
A faixa ideal de umidade da muçarela deve situar-se entre 43% e 46%, sendo este intervalo variável dependendo do teor de gordura (caso o GES seja baixo, é aceitável uma umidade ligeiramente mais elevada). Além disso, outros fatores contribuem para o aumento da umidade, tais como o corte de grãos em dimensões excessivamente grandes, semi-cozimento em baixas temperaturas, agitação inadequada, ponto de coagulação com gel frágil, inibição dos fermentos, uso de leite ácido ou até mesmo a filagem no mesmo dia (FURTADO, 2005).
Assim, a análise detalhada desses fatores revela como a interação entre temperatura e umidade pode afetar significativamente a qualidade da muçarela, impactando diretamente sua fatiabilidade e apelo culinário. Compreender essa dinâmica é crucial para aprimorar as práticas de produção e garantir uma muçarela que atenda às expectativas dos consumidores mais exigentes.
A escolha do coalho e fermento lático
Os coagulantes microbianos são opções viáveis, porém devem ser evitados em casos de armazenamento prolongado, devido à sua maior propensão à proteólise em comparação com os coalhos de origem animal. Além disso, esses coagulantes são mais resistentes ao processo de filagem, permanecendo no queijo e potencialmente acelerando a proteólise da caseína.
Quanto à escolha do fermento, os fermentos que contém bacilos são mais propensos à proteólise do que aqueles que contêm cocos. Neste caso, embora seja desejável ter algum grau de proteólise para aprimorar as propriedades funcionais da muçarela, outros fatores que afetam a proteólise, como umidade, teor de sal, temperatura e tempo de armazenamento devem ser devidamente controlados. Entender a arte e a ciência por trás desses elementos é fundamental para os entusiastas da culinária que buscam aprimorar a qualidade e fatiabilidade deste queijo (FURTADO, 2005).
A fermentação e filagem da massa
O pH no momento da transferência da massa para a fermentação é um parâmetro crucial que impacta diretamente no teor de cálcio da massa e na curva de decaimento do pH durante a fermentação. Quando a massa é fermentada com um pH ligeiramente mais elevado, é de se esperar que ela ainda esteja bem mineralizada e com maior capacidade tampão resultando em um abaixamento lento e gradual do pH. Quando esse pH é mais alto, a aparência da massa pode ser mais “enrugada”. Neste caso, massas que filam em pH mais elevado geralmente mantêm um teor residual de cálcio mais alto, conferindo-lhes uma estrutura mais firme.
Ao longo do tempo de armazenamento da muçarela, a proteólise avança, e qualquer massa tende a amolecer gradualmente, podendo até perder sua característica de corte e começar a “mascar” na fatiadora. Assim, uma massa mais mineralizada resiste por mais tempo à perda de sua fatiabilidade. Além disso, o pH de filagem também é crucial para a utilização subsequente do soro.
O soro atualmente possui alto valor agregado e pode ar por diversos tratamentos, como concentração por evaporação ou por membranas, secagem, ou simplesmente ser utilizado como ingrediente em bebidas lácteas, doce de leite, entre outros. Portanto, manter o pH dentro de determinados níveis de acidez é essencial. Se a transferência da massa para a etapa de fermentação ocorre com um pH mais baixo, o soro resultante acidifica rapidamente, tornando-se inadequado para a maioria das aplicações usuais (FURTADO, 2016).
Desvendando os mistérios da fatiabilidade da muçarela
Ao longo desta exploração das complexidades da fatiabilidade da Mussarela, fica claro que a resposta para a pergunta “Por que minha muçarela não fatia bem?” está ancorada em uma interconexão de fatores complexos. O desafio de garantir fatiabilidade ideal é particularmente relevante no contexto brasileiro, onde a preferência por fatias se confronta com outras práticas culinárias de outros países.
Assim sendo, diversos fatores desempenham um papel determinante na textura final do queijo, seja desde a escolha do leite, a definição dos teores ideais de gordura e proteína, até a seleção criteriosa de ingredientes como coalho e fermento lático, bem como os pontos críticos de cada etapa do processo de fabricação. Ao compreender esses elementos, tanto consumidores quanto produtores estarão capacitados a elevar a qualidade da muçarela, proporcionando experiências gastronômicas mais satisfatórias e consistentes.
A fatiabilidade da muçarela é um equilíbrio delicado entre ciência e arte, onde cada variável contribui para a harmonia final do produto. Este conhecimento não apenas enriquece a apreciação deste queijo, mas também abre caminho para uma produção mais refinada.
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Autores:
Lucas Soares Silva - Graduando em Ciência e Tecnologia de Laticínios e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira - Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior - Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Agradecimentos:
Os autores agradecem a CAPES - Código Financiamento 001; à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto APQ-00388-21 e APQ-00785-23; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto (429033/2018-4) e pela bolsa de produtividade à B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6).
Referências bibliográficas
FURTADO, Múcio M. Problemas específicos de alguns tipos de queijos: Queijo Mussarela: principais defeitos e problemas de sua utilização em pizzas. In: FURTADO, Múcio M. Principais Problemas dos Queijos Causas e Prevenção. 2. ed. rev. São Paulo - Brasil: Fonte Comunicações e Editora, 2005. cap. 7, p. 151-171.
FURTADO, Múcio M. Mussarela: Fabricação e Funcionalidade. 1. ed. São Paulo - Brasil: Setembro Editora, 2016. 241 p.