O leite é um alimento de grande relevância mundial e suas características nutricionais e sensoriais impactam diretamente em sua aceitação. O sabor e odor característico do leite amplia seu leque de aplicações na indústria de alimentos, seja na produção de leite e derivados lácteos, bem como na elaboração de diversos produtos alimentícios.
Do ponto de vista físico-químico, o leite é uma mistura homogênea, composta por proteínas, carboidratos, lipídios, vitaminas e sais minerais dispersos em água. As caseínas encontram-se em suspensão, enquanto as proteínas do soro, lactose e vitaminas hidrossolúveis estão dispersas em dissolução.
Já os lipídios e substâncias associadas estão presentes sob forma de emulsão. Essas características fazem do leite um líquido branco, opaco, com odor suave, sabor característico levemente adocicado e textura homogênea (ORDÓÑEZ et al., 2005).
A análise sensorial dos alimentos interpreta as reações humanas frente às características dos mesmos, que são percebidas principalmente pelos sentidos: paladar, olfato e visão (Figura 1). Neste sentido, alterações sobre os atributos sensoriais do leite apresentam consequências diretas no nível de aceitação dos produtos elaborados. Desta forma, esse artigo técnico tem como objetivo apresentar os atributos sensoriais do leite e descrever os impactos positivos e negativos dos fatores que afetam esses atributos.
Figura 1. Análise sensorial do leite.
Fonte: autoria própria.
Atributos sensoriais do leite de consumo
As características sensoriais do leite refletem sua identidade e podem ser utilizadas como referência para avaliar sua qualidade. De acordo com o Regulamento técnico de Identidade e Qualidade do Leite cru refrigerado (BRASIL, 2018), o leite deve apresentar:
- Aspecto e cor: Líquido branco, opalescente e homogêneo.
- Sabor e odor: Característico, isento de sabores e odores estranhos.
Em relação à coloração, a cor branco-amarelada é resultado da presença dos diferentes nutrientes que absorvem e refletem a luz dentro da região visível, cujo comprimento de onda estende-se entre 400 nm e 700 nm. Seus componentes desviam a luz incidente em todas as direções, gerando a coloração branca. Já o leve amarelado, se deve à presença do pigmento β-caroteno, que está associado aos lipídios do leite, o que pode ser notado em derivados lácteos com altos teores de gordura, como queijos e manteiga.
Cores anormais do leite podem indicar desenvolvimento microbiano, como é o caso da cor vermelha causada por Serratia marcescens (LAPENDA et al., 2020) ou a cor esverdeada decorrente de Pseudomonas spp. Essa última, por sua vez, tem sido relatada dentre os psicrotróficos de maior frequência em leite refrigerado (BRUZAROSKI et al., 2017).
Em geral, o odor do leite é considerado suave e levemente ácido, no entanto, pode ser facilmente alterado por absorção, normalmente relacionada ao meio ambiente e utensílios que entram em contato com o alimento. O desenvolvimento de odores estranhos no leite também pode ser causado por outros fatores conforme apresentado na Figura 2.
Figura 2. Fatores que causam sabores e odores estranhos no leite.
Fonte: adaptado de EMBRAPA, 2021.
Em relação ao sabor, observa-se suavidade, ou seja, sabor pouco pronunciado e ligeiramente doce devido à presença de lactose, que apresenta baixo poder de doçura. As alterações no sabor também podem indicar o crescimento microbiano, assim como ação enzimática.
A lipase é um exemplo de enzima que está naturalmente presente no leite, no entanto, a alta concentração desta enzima pode ser decorrente da contaminação microbiana que gera alterações desagradáveis no aroma e no sabor (como sabor de ranço) em leite e derivados.
As proteases, assim como as lipases, podem ser produzidas por microrganismos psicrotróficos, possibilitando o desenvolvimento de sabor amargo e off-flavor decorrente da ação proteolítica sobre, principalmente, as caseínas levando a liberação de peptídeos hidrofóbicos.
Em aos leites UHT, a presença dessas proteases pode provocar gelificação deste produto, devido à ação inespecífica destas enzimas sobre as caseínas, resultando em uma desestabilização proteica com consequente alteração da textura do produto (PAULO; MONTANHINI; RIBEIRO, 2021). Em paralelo, a baixa qualidade microbiológica do leite cru favorece sua acidificação precoce e diminui a estabilidade térmica, comprometendo sua qualidade sensorial e, consequentemente, sua comercialização.
Desta forma, destaca-se que para obtenção de um leite de consumo com características sensoriais desejadas, torna-se indispensável a adoção das boas práticas de fabricação, que se baseia na higiene pessoal dos manipuladores, bem como a higiene do ambiente, dos equipamentos, utensílios e instalações.
Além disso, a qualidade sensorial do leite também está diretamente relacionada às condições de saúde do rebanho e ao cumprimento das obrigatoriedades exigidas pelas legislações vigentes (IN n° 76 de 2018 - BRASIL, 2018 e IN n°55 de 2020 - BRASIL, 2020) no que diz respeito à refrigeração, coleta, armazenamento, dentre outros requisitos.
A composição centesimal também interfere no sabor e aspecto do leite, que por ser de origem biológica, pode apresentar variações no teor de seus nutrientes. Dentre os principais fatores que influenciam essas variações tem-se: raça do animal, alimentação, tempo de lactação e variações climáticas (MARIN et al., 2021). Entretanto, caso o leite possua teores de macronutrientes dentro dos limites estabelecidos pela legislação, as alterações de sabor causadas por esses fatores são consideradas normais e características.
Por fim, na indústria, algumas etapas do processamento do leite também podem alterar suas características sensoriais, como a padronização de gordura e o tratamento térmico. O leite pasteurizado é o que mais se aproxima da matéria-prima in natura em termos de cor, aroma e sabor, pois o leite é submetido a um processamento térmico mais brando, minimizando os efeitos de odor e sabor cozido.
Além disso, as versões integral, semidesnatado e desnatado também apresentam diferenças no sabor devido à alteração no teor de gordura. Vale ressaltar que, nesse caso, as alterações sensoriais não são necessariamente ruins. Há consumidores que apreciam o leite ‘menos gordo’ devido ao desnate e o ‘sabor cozido’ gerado pela desnaturação das proteínas do soro e formação de compostos sulfurados durante o tratamento térmico.
Considerações finais
A análise sensorial do leite é uma forma de avaliar previamente sua qualidade e ratificar a importância da aplicação das boas práticas durante a obtenção, coleta, transporte, beneficiamento e armazenamento do leite.
Além de apresentar aspectos sensoriais normais e característicos, o leite deve cumprir os requisitos preconizados pelas legislações vigentes e ar por todos os testes obrigatórios, minimizando os riscos de contaminações e garantindo qualidade e segurança aos consumidores de leite e derivados.
Autores
Isabela Soares Magalhães (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira (Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior (Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Agradecimentos:
Os autores agradecem a CAPES - Código Financiamento 001; à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto APQ-00388-21; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto (429033/2018-4) e pela bolsa de produtividade à B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6).
Referências
BRASIL. Instrução Normativa n° 55, de 30 de setembro de 2020. Altera a Instrução Normativa nº 76, de 26 de novembro de 2018. Diário Oficial da União. Brasília, de 30 de set. de 2020.
BRASIL. Instrução Normativa nº 76, de 26 de novembro de 2018. Aprova os Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade de Leite Cru Refrigerado, Leite Pasteurizado e Leite Pasteurizado Tipo A. Diário Oficial da União, 2018.
BRUZAROSKI, S. R. et al. Psicrotróficos e Pseudomonas SPP. em Leite Cru Refrigerado. UNICIÊNCIAS, v. 21, n. 1, p. 12-16, 2017.
EMBRAPA. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Agronegócio do leite: Qualidade sensorial. 2021. Disponível em: https://www.embrapa.br/agencia-de-informacao-tecnologica/criacoes/gado_de_leite/pre-producao/qualidade-e-seguranca/qualidade/qualidade-sensorial#:~:text=O%20leite%20de%20boa%20qualidade,suave%20e%20gosto%20levemente%20adocicado. o em 08 fev. 2023.
LAPENDA, J. C. L. et al. Cytotoxic effect of prodigiosin, natural red pigment, isolated from Serratia marcescens UFPEDA 398. Indian journal of microbiology, v. 60, p. 182-195, 2020.
MARIN, G. R. et al. Características sensoriais e físicas de diferentes marcas de leite de vaca pasteurizado. Brazilian Journal of Development, v. 7, n. 1, p. 6619-6632, 2021.
ORDÓÑEZ, J. A. et al. Características gerais do leite e componentes fundamentais. Tecnologia de Alimentos, v. 2, p. 13-37, 2005.
PAULO, I. A.; MONTANHINI, M.T. M.; RIBEIRO, L. F. Consequência da presença de bactérias psicrotróficas em leite e derivados. Revista GeTeC, v. 10, n. 25, 2021.