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Uma ideia para eliminar a volatilidade e a incerteza no mercado de leite

A volatilidade e a incerteza serão sempre parte do negócio, como em qualquer commodity, ou há como subverter essa lógica? A resposta é sim, há como mudar isso!

Publicado em: - 8 minutos de leitura

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Vender o leite sem saber o quanto vai receber e lidar com a enorme variação dos preços, a chamada volatilidade, são dores apontadas frequentemente pelos produtores de leite. Isso dificulta o planejamento, atrasa os investimentos e encarece o crédito, entre outros desdobramentos que afetam o desenvolvimento da atividade.

Do lado do laticínio, as mesmas incertezas ocorrem, porém do outro lado do balcão: qual será o custo de aquisição do leite no próximo ciclo, e como esse custo conversará com os preços de venda é uma questão central para um setor no qual, evidentemente, o leite é o custo principal.

Analisando a flutuação dos preços do leite nos últimos 23 anos, comparando-o com a inflação medida pelo IPCA, percebe-se que tanto o produtor como a indústria lidam com uma verdadeira montanha-russa (gráfico 1). Não é preciso muita análise para ponderar que essa volatilidade, cujo par é justamente a incerteza, é nociva para qualquer negócio.

Observando o gráfico, surpreende, na verdade, o quão pouco se discute isso, buscando-se soluções realistas, seja a em nível de empresa, seja em nível setorial (dentro disso, é louvável a discussão capitaneada pela CNA a respeito da implantação de mercados futuros para o leite no Brasil, o que poderia resolver em parte essa questão).

Gráfico 1. Variação anual do preço do leite ao produtor x inflação Brasil - IPCA

Variação anual do preço do leite ao produtor x inflação Brasil - IPCA

A pergunta que se faz é: poderia ser diferente, em se tratando de uma commodity, cuja produção responde a diversos fatores, como rentabilidade da atividade, clima, demanda interna e externa, e outros muitos aspectos, em um mercado não regulado e com baixas barreiras de entrada e de saída? Em outras palavras, a volatilidade e a incerteza serão sempre parte do negócio, como em qualquer commodity, ou há como subverter essa lógica?

A resposta é: sim, há como mudar isso, através de contratos a preço fixado antecipadamente. Mas como fazer isso sem que o risco de ambos os lados seja elevado demais, já que ninguém sabe os preços futuros de venda dos lácteos? Nesse contexto, contratar a que preço?

Um modelo possivelmente interessante é a indexação a partir do preço médio do ano anterior, adicionado de uma estimativa de inflação. Imagine que o preço médio do mercado em determinado ano foi R$ 2,50/litro e a estimativa para a inflação da economia no ano seguinte seja de 5%. O contrato firmado seria de R$ 2,625/litro, mais as bonificações/penalizações de qualidade e as bonificações de volume, além de outras, se houver.

O gráfico 2 mostra, para os últimos 5 anos, como o preço flutuou na prática (linha azul) e como seria o preço aplicando-se essa fórmula simples (linha vermelha), como – para 2020, considerou-se o preço médio de 2019, que não aparece no gráfico + inflação real em 2020. A inflação real foi utilizada para todos os anos da análise, sempre partindo do preço médio do ano anterior, mais a inflação.

Gráfico 2. Comportamento do preço nominal do leite vs contratos com base no ano anterior

Comportamento do preço nominal do leite vs contratos com base no ano anterior

Esse modelo resulta em volatilidade muito menor, e praticamente zero incerteza, já que tanto produtor como indústria saberão o preço a receber/pagar no ano seguinte. Ao final de 2021, por exemplo, o produtor já saberia que receberia R$ 2,16/litro em 2022. Se esse formato for adotado em conjunto com o travamento de preços do milho e da soja no mercado futuro, o produtor em questão já teria uma visão bem realista de sua rentabilidade no ano seguinte.

A tabela 1 traz os valores médios nominais e o valor teórico sob contrato + inflação, nos últimos 5 anos. Como o leite subiu muito fortemente no primeiro ano da série (22,6% em 2020), muito acima da inflação, que foi usada para o cálculo do preço sob contrato em 2020 (3,21%), no espaço de 5 anos houve uma leve vantagem de preços ao produtor se considerarmos os valores nominais do mercado. Mas basta termos um ano de retrocesso de preços para que os valores convirjam. Veja na tabela que, nos primeiros 3 anos a vantagem foi do “mercado”, já que o leite subiu muito em valores médios tanto em 2020, como 2021 e 2022. Com o retrocesso em 2023 (7,5% negativos nominalmente) e com o andar de lado de 2024 (2,9%, abaixo da inflação), essa vantagem foi se perdendo.

Tabela 1: preços médios do leite (R$/litro), em valores nominais x preços teóricos no leite no contrato.

preços médios do leite (R$/litro), em valores nominais x preços teóricos no leite no contrato.

Vale lembrar que o fato de ser um contrato não guarda qualquer semelhança com os contratos hoje vigentes, normalmente indexados no Cepea ou Conseleite, ou mesmo nos indicadores do MilkPoint Mercado, com algum bônus. Os contratos atuais não reduzem a volatilidade, nem a incerteza, além de contaminarem o próprio índice. Podem ter sua serventia, mas não resolvem essas questões.

Desvantagens

As vantagens são mais óbvias, mas vamos começar pelas desvantagens. A primeira é o descasamento entre o preço recebido pelo produtor (e pago pela indústria) e a situação do mercado em dado momento. E é provável que isso ocorra, já que a atividade vive de ciclos. Vamos supor que, em dado ano, os preços ao produtor caiam significativamente, fruto da queda dos preços no atacado. Hoje, a indústria atua reando em parte o problema, primeiro e de forma mais intensa no leite spot, e em menor grau, no leite ao produtor. No caso do leite contratado, isso não ocorreria: ela estaria pagando um valor não condizente com a situação de mercado, estressando seu caixa. No ciclo seguinte, quem perderia é o produtor: a baixa de preços do ano anterior finalmente chegaria até ele, possivelmente em um cenário de recuperação de preços no mercado, já que a queda no ano anterior deverá ter desestimulado a produção. Agora, a indústria é quem teria uma situação de vantagem. Uma possibilidade para minimizar esses riscos é trabalhar com ciclos de 6 meses em vez do ano todo. Já seria um grande avanço frente ao que temos hoje.

Em ambos os casos, tanto a gestão de caixa como a gestão do emocional precisam ser trabalhadas. Imagine-se sendo um produtor, digamos, em meados de 2022, recebendo o preço de 2021 + inflação (R$ 2,16/litro, conforme o exemplo anterior), em um momento de forte subida de preços...no auge, ele veria o mercado chegando a R$ 3,57/litro. Como o sentimento de aversão a perdas é emocionalmente muito mais impactante do que o sentimento relativo aos ganhos, esse produtor inevitavelmente se questionaria se fez a coisa certa, ainda que, racionalmente, saiba que no ciclo seguinte a situação lhe favoreceria. De fato, em dezembro de 2023 ele estaria recebendo R$ 2,67/litro, enquanto o mercado desabaria para R$ 1,97.

A segunda desvantagem é que, à medida que o leite contratado se torne frequente, ele automaticamente vai contaminar o próprio índice. No limite, se 100% do leite for contratado em uma fórmula do tipo “preço anterior + inflação”, oferta e demanda param de atuar e teremos um mercado descolado da realidade. A solução para isso é que o índice de preços considere somente o leite não contratado, isto é, o leite que efetivamente representa o que está ocorrendo com o mercado em determinado momento.

Obviamente, não se espera e nem faria sentido que todo o leite fosse contratado a preços definidos previamente. Primeiro, pelo motivo acima exposto: se isso ocorresse, perderíamos os fundamentos básicos do funcionamento do mercado. Segundo, porque há um aumento do risco por parte da indústria, dependendo do seu portfólio. Indústrias com produtos mais comoditizados, cujos preços flutuam muito mais, talvez não vejam sentido em contratar a preço fixo. Por outro lado, indústrias com produtos de maior valor agregado, com que atuam suprindo o food service, possivelmente veriam sentido em travar o custo de maior quantidade de leite, já que seus produtos não deveriam flutuar muito de preço. Evidentemente, a indústria pode balancear seus contratos de acordo com o seu portfólio. Se uma empresa tem 20% do leite indo para valor agregado, poderia ter como meta contratar um volume compatível.

Vantagens

As vantagens potenciais são muitas. Do lado do produtor, obviamente a menor volatilidade e a eliminação da incerteza permitem planejar melhor as atividades, decidir por investimentos e mesmo ar crédito mais barato, ao menos potencialmente, já que o risco será menor. Também, não perderá tempo negociando mensalmente o leite ou se estressando com o mercado, direcionando seu tempo e esforços para o negócio em si. As altas e baixas serão suavizadas pelas médias, e virão somente lá na frente.

Para a indústria, ter certeza do custo de (parte) do leite também facilita o planejamento, o orçamento, o o a crédito e mesmo a negociação com o cliente, no caso do food service, que provavelmente teria interesse em saber de antemão o preço, talvez até pagando um pequeno prêmio para isso. Provavelmente, a estrutura de captação de leite poderia ser otimizada também, uma vez que parte do leite já estaria contratada a preço definido.

Do lado do supply chain, laticínios e produtores contratados poderiam estreitar o relacionamento, que iria muito além do comercial, e que não seria prejudicado pelas negociações de curto prazo. Com isso, a longevidade da relação seria maior, bem como as possibilidades de atuação conjunta visando o desenvolvimento do próprio fornecedor, o que, lá na frente, poderia resultar em maior eficiência e em evoluções que precisam de tempo para ocorrer, como aumento de sólidos via genética e agricultura regenerativa.

Sempre haverá, claro, quem prefere participar do “jogo”, isto é, ter a certeza de que está otimizando preços nos momentos de alta e se virar nos momentos de baixa. Não há nada de errado nisso.

Mas essa não é a única opção para o mercado, e chama a atenção que quase não se vê exemplos que desafiam o status.

Quando todo o mercado tem uma mesma prática, a obtenção de vantagem competitiva pode vir justamente de subverter essa prática e fazer de forma diferente. Se, por exemplo, a grande vantagem de um banco de varejo era a sua capilaridade, com milhares de agências, vem alguém e cria um banco sem agências, tornando aquela suposta vantagem, na verdade, uma desvantagem. O desafiante pode entrar no mercado atacando os pontos fracos escondidos nas forças dos líderes.

Nesse sentido, a sua força pode virar a sua fraqueza, quando por exemplo o padrão tecnológico muda, ou quando o comportamento do consumidor se altera. No caso do leite, a volatilidade e a incerteza são tidas como características imutáveis. Até que alguém se pergunta “e se...” e começa a explorar outras possibilidades.

Um ótimo 2025 para todos que nos acompanharam nesta jornada! Em nome de nossa equipe, gostaria de agradecer a todos que estiveram conosco na missão de levar a cadeia do leite a um futuro de sucesso!

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Marcelo Pereira de Carvalho

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ALBERTO WERNECK DE FIGUEIREDO
ALBERTO WERNECK DE FIGUEIREDO

RESENDE - RIO DE JANEIRO - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 16/01/2025

Marcelo, parabéns por colocar esse importante tema em salutar debate. Tomo a liberdade de introduzir um outro conceito, qual seja o da NEGOCIAÇÃO entre TODOS os elos da cadeia leiteira, INCLUSIVE O SISTEMA VAREJISTA, de MARGENS MÁXIMAS para cada segmento. Assim, por dedução sucessiva, à partir do preço final representativo da realidade, excluídas as promoções de aniversário da rede varejista, se concluiria a participação dos distribuidores, da indústria e, finalmente do PRODUTOR. Assim, o mercado ditaria os valores praticados, sem que os segmentos continuassem se "degladiando" tanto quanto na atualidade, em que cada um procure a mais alta remuneração, infelizmente, em prejuízo dos produtores que, pela característica de pulverização, perdem poder de negociação.
Daniel Brum de Cerqueira Leite Ribeiro
DANIEL BRUM DE CERQUEIRA LEITE RIBEIRO

PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL - INDÚSTRIA DOS LACTICÍNIOS

EM 13/01/2025

O contrato é desejado e temido para ambos os lados: se a tendência é de alta, o laticínio deseja o travamento de preço, já o produtor sente a "perda", ou falta de ganho.
Quando a curva se inverte, os sentimentos trocam de posição entre eles.
Com produtores e laticínios sempre focando no curto prazo, temos o reflexo de quebras de contrato tão recorrentes.

Não é novidade para ninguém que o mercado interno está cada vez mais influenciado pelo preços internacionais, inclusive com alguns laticínios já comparando os preços do leite brasileiro em dólar.
Eu penso que, num futuro não muito distante, nossos preços serão equiparados ao mercado internacional + basis, assim como na soja, milho etc.

Se a tendência se concretizar, será que não conseguiríamos aproveitar os instrumentos já existentes no mercado financeiro, como operações de hedge e seguros, para diminuir essa volatilidade?
Se sim, os valores comercializados no leilão GDT, por exemplo, poderiam ser utilizados para lastrear o preço do leite de produtores brasileiros?

Um abraço!
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Oi Daniel, obrigado pelo comentário. A CNA está trabalhando no sentido de desenvolver mercados futuros para o leite. Mas entendo que são ferramentas distintas. O contrato a preço baseado na média do ano anterior + inflação prevista seria uma alternativa mais fácil de se fazer, embora, como você mencionou, envolve se desprender dos altos e baixos que ocorrem no mercado. Se determinado produtor ou indústria preferirem atuar no risco, é uma decisão deles. Sem dúvida o contrato a preço conhecido funciona para quem prefere ter segurança e previsibilidade, sabendo que os altos e baixos se refletirão somente nas médias do período seguinte. É uma mudança de mindset, sem dúvida.
Sérgio Ely
SÉRGIO ELY

LAJEADO - RIO GRANDE DO SUL

EM 12/01/2025

Excelente material. Que a cadeia se torne cada vez mais profissional e demonstre maturidade para ao menos testar ferramentas sugeridas como a deste artigo.
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Obrigado Sérgio!
Osmar Redin
OSMAR REDIN

PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 13/01/2025

Parabéns Marcelo pelo artigo. Muito esclarecedor e provoca uma bela reflexão. Eu só acrescentaria na proposta uma trava para subida ou descida brusca no preço de mercado. Por exemplo: Se o preço no mercado subir ou descer além de 10% teria uma cláusula de negociação.
Atenciosamente.
Redin.
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Obrigado Redin. Essa é uma provocação inicial, e certamente há ajustes a se fazer. A cláusula de negociação para mudanças extremas é uma possibilidade. Mas, de qualquer forma, mudanças de preços que ocorrem em um determinado ano, irão se refletir no ano seguinte, porém diluídas nas médias.
Qual a sua dúvida hoje?

Uma ideia para eliminar a volatilidade e a incerteza no mercado de leite

A volatilidade e a incerteza serão sempre parte do negócio, como em qualquer commodity, ou há como subverter essa lógica? A resposta é sim, há como mudar isso!

Publicado em: - 8 minutos de leitura

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Vender o leite sem saber o quanto vai receber e lidar com a enorme variação dos preços, a chamada volatilidade, são dores apontadas frequentemente pelos produtores de leite. Isso dificulta o planejamento, atrasa os investimentos e encarece o crédito, entre outros desdobramentos que afetam o desenvolvimento da atividade.

Do lado do laticínio, as mesmas incertezas ocorrem, porém do outro lado do balcão: qual será o custo de aquisição do leite no próximo ciclo, e como esse custo conversará com os preços de venda é uma questão central para um setor no qual, evidentemente, o leite é o custo principal.

Analisando a flutuação dos preços do leite nos últimos 23 anos, comparando-o com a inflação medida pelo IPCA, percebe-se que tanto o produtor como a indústria lidam com uma verdadeira montanha-russa (gráfico 1). Não é preciso muita análise para ponderar que essa volatilidade, cujo par é justamente a incerteza, é nociva para qualquer negócio.

Observando o gráfico, surpreende, na verdade, o quão pouco se discute isso, buscando-se soluções realistas, seja a em nível de empresa, seja em nível setorial (dentro disso, é louvável a discussão capitaneada pela CNA a respeito da implantação de mercados futuros para o leite no Brasil, o que poderia resolver em parte essa questão).

Gráfico 1. Variação anual do preço do leite ao produtor x inflação Brasil - IPCA

Variação anual do preço do leite ao produtor x inflação Brasil - IPCA

A pergunta que se faz é: poderia ser diferente, em se tratando de uma commodity, cuja produção responde a diversos fatores, como rentabilidade da atividade, clima, demanda interna e externa, e outros muitos aspectos, em um mercado não regulado e com baixas barreiras de entrada e de saída? Em outras palavras, a volatilidade e a incerteza serão sempre parte do negócio, como em qualquer commodity, ou há como subverter essa lógica?

A resposta é: sim, há como mudar isso, através de contratos a preço fixado antecipadamente. Mas como fazer isso sem que o risco de ambos os lados seja elevado demais, já que ninguém sabe os preços futuros de venda dos lácteos? Nesse contexto, contratar a que preço?

Um modelo possivelmente interessante é a indexação a partir do preço médio do ano anterior, adicionado de uma estimativa de inflação. Imagine que o preço médio do mercado em determinado ano foi R$ 2,50/litro e a estimativa para a inflação da economia no ano seguinte seja de 5%. O contrato firmado seria de R$ 2,625/litro, mais as bonificações/penalizações de qualidade e as bonificações de volume, além de outras, se houver.

O gráfico 2 mostra, para os últimos 5 anos, como o preço flutuou na prática (linha azul) e como seria o preço aplicando-se essa fórmula simples (linha vermelha), como – para 2020, considerou-se o preço médio de 2019, que não aparece no gráfico + inflação real em 2020. A inflação real foi utilizada para todos os anos da análise, sempre partindo do preço médio do ano anterior, mais a inflação.

Gráfico 2. Comportamento do preço nominal do leite vs contratos com base no ano anterior

Comportamento do preço nominal do leite vs contratos com base no ano anterior

Esse modelo resulta em volatilidade muito menor, e praticamente zero incerteza, já que tanto produtor como indústria saberão o preço a receber/pagar no ano seguinte. Ao final de 2021, por exemplo, o produtor já saberia que receberia R$ 2,16/litro em 2022. Se esse formato for adotado em conjunto com o travamento de preços do milho e da soja no mercado futuro, o produtor em questão já teria uma visão bem realista de sua rentabilidade no ano seguinte.

A tabela 1 traz os valores médios nominais e o valor teórico sob contrato + inflação, nos últimos 5 anos. Como o leite subiu muito fortemente no primeiro ano da série (22,6% em 2020), muito acima da inflação, que foi usada para o cálculo do preço sob contrato em 2020 (3,21%), no espaço de 5 anos houve uma leve vantagem de preços ao produtor se considerarmos os valores nominais do mercado. Mas basta termos um ano de retrocesso de preços para que os valores convirjam. Veja na tabela que, nos primeiros 3 anos a vantagem foi do “mercado”, já que o leite subiu muito em valores médios tanto em 2020, como 2021 e 2022. Com o retrocesso em 2023 (7,5% negativos nominalmente) e com o andar de lado de 2024 (2,9%, abaixo da inflação), essa vantagem foi se perdendo.

Tabela 1: preços médios do leite (R$/litro), em valores nominais x preços teóricos no leite no contrato.

preços médios do leite (R$/litro), em valores nominais x preços teóricos no leite no contrato.

Vale lembrar que o fato de ser um contrato não guarda qualquer semelhança com os contratos hoje vigentes, normalmente indexados no Cepea ou Conseleite, ou mesmo nos indicadores do MilkPoint Mercado, com algum bônus. Os contratos atuais não reduzem a volatilidade, nem a incerteza, além de contaminarem o próprio índice. Podem ter sua serventia, mas não resolvem essas questões.

Desvantagens

As vantagens são mais óbvias, mas vamos começar pelas desvantagens. A primeira é o descasamento entre o preço recebido pelo produtor (e pago pela indústria) e a situação do mercado em dado momento. E é provável que isso ocorra, já que a atividade vive de ciclos. Vamos supor que, em dado ano, os preços ao produtor caiam significativamente, fruto da queda dos preços no atacado. Hoje, a indústria atua reando em parte o problema, primeiro e de forma mais intensa no leite spot, e em menor grau, no leite ao produtor. No caso do leite contratado, isso não ocorreria: ela estaria pagando um valor não condizente com a situação de mercado, estressando seu caixa. No ciclo seguinte, quem perderia é o produtor: a baixa de preços do ano anterior finalmente chegaria até ele, possivelmente em um cenário de recuperação de preços no mercado, já que a queda no ano anterior deverá ter desestimulado a produção. Agora, a indústria é quem teria uma situação de vantagem. Uma possibilidade para minimizar esses riscos é trabalhar com ciclos de 6 meses em vez do ano todo. Já seria um grande avanço frente ao que temos hoje.

Em ambos os casos, tanto a gestão de caixa como a gestão do emocional precisam ser trabalhadas. Imagine-se sendo um produtor, digamos, em meados de 2022, recebendo o preço de 2021 + inflação (R$ 2,16/litro, conforme o exemplo anterior), em um momento de forte subida de preços...no auge, ele veria o mercado chegando a R$ 3,57/litro. Como o sentimento de aversão a perdas é emocionalmente muito mais impactante do que o sentimento relativo aos ganhos, esse produtor inevitavelmente se questionaria se fez a coisa certa, ainda que, racionalmente, saiba que no ciclo seguinte a situação lhe favoreceria. De fato, em dezembro de 2023 ele estaria recebendo R$ 2,67/litro, enquanto o mercado desabaria para R$ 1,97.

A segunda desvantagem é que, à medida que o leite contratado se torne frequente, ele automaticamente vai contaminar o próprio índice. No limite, se 100% do leite for contratado em uma fórmula do tipo “preço anterior + inflação”, oferta e demanda param de atuar e teremos um mercado descolado da realidade. A solução para isso é que o índice de preços considere somente o leite não contratado, isto é, o leite que efetivamente representa o que está ocorrendo com o mercado em determinado momento.

Obviamente, não se espera e nem faria sentido que todo o leite fosse contratado a preços definidos previamente. Primeiro, pelo motivo acima exposto: se isso ocorresse, perderíamos os fundamentos básicos do funcionamento do mercado. Segundo, porque há um aumento do risco por parte da indústria, dependendo do seu portfólio. Indústrias com produtos mais comoditizados, cujos preços flutuam muito mais, talvez não vejam sentido em contratar a preço fixo. Por outro lado, indústrias com produtos de maior valor agregado, com que atuam suprindo o food service, possivelmente veriam sentido em travar o custo de maior quantidade de leite, já que seus produtos não deveriam flutuar muito de preço. Evidentemente, a indústria pode balancear seus contratos de acordo com o seu portfólio. Se uma empresa tem 20% do leite indo para valor agregado, poderia ter como meta contratar um volume compatível.

Vantagens

As vantagens potenciais são muitas. Do lado do produtor, obviamente a menor volatilidade e a eliminação da incerteza permitem planejar melhor as atividades, decidir por investimentos e mesmo ar crédito mais barato, ao menos potencialmente, já que o risco será menor. Também, não perderá tempo negociando mensalmente o leite ou se estressando com o mercado, direcionando seu tempo e esforços para o negócio em si. As altas e baixas serão suavizadas pelas médias, e virão somente lá na frente.

Para a indústria, ter certeza do custo de (parte) do leite também facilita o planejamento, o orçamento, o o a crédito e mesmo a negociação com o cliente, no caso do food service, que provavelmente teria interesse em saber de antemão o preço, talvez até pagando um pequeno prêmio para isso. Provavelmente, a estrutura de captação de leite poderia ser otimizada também, uma vez que parte do leite já estaria contratada a preço definido.

Do lado do supply chain, laticínios e produtores contratados poderiam estreitar o relacionamento, que iria muito além do comercial, e que não seria prejudicado pelas negociações de curto prazo. Com isso, a longevidade da relação seria maior, bem como as possibilidades de atuação conjunta visando o desenvolvimento do próprio fornecedor, o que, lá na frente, poderia resultar em maior eficiência e em evoluções que precisam de tempo para ocorrer, como aumento de sólidos via genética e agricultura regenerativa.

Sempre haverá, claro, quem prefere participar do “jogo”, isto é, ter a certeza de que está otimizando preços nos momentos de alta e se virar nos momentos de baixa. Não há nada de errado nisso.

Mas essa não é a única opção para o mercado, e chama a atenção que quase não se vê exemplos que desafiam o status.

Quando todo o mercado tem uma mesma prática, a obtenção de vantagem competitiva pode vir justamente de subverter essa prática e fazer de forma diferente. Se, por exemplo, a grande vantagem de um banco de varejo era a sua capilaridade, com milhares de agências, vem alguém e cria um banco sem agências, tornando aquela suposta vantagem, na verdade, uma desvantagem. O desafiante pode entrar no mercado atacando os pontos fracos escondidos nas forças dos líderes.

Nesse sentido, a sua força pode virar a sua fraqueza, quando por exemplo o padrão tecnológico muda, ou quando o comportamento do consumidor se altera. No caso do leite, a volatilidade e a incerteza são tidas como características imutáveis. Até que alguém se pergunta “e se...” e começa a explorar outras possibilidades.

Um ótimo 2025 para todos que nos acompanharam nesta jornada! Em nome de nossa equipe, gostaria de agradecer a todos que estiveram conosco na missão de levar a cadeia do leite a um futuro de sucesso!

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Marcelo Pereira de Carvalho

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ALBERTO WERNECK DE FIGUEIREDO
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RESENDE - RIO DE JANEIRO - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 16/01/2025

Marcelo, parabéns por colocar esse importante tema em salutar debate. Tomo a liberdade de introduzir um outro conceito, qual seja o da NEGOCIAÇÃO entre TODOS os elos da cadeia leiteira, INCLUSIVE O SISTEMA VAREJISTA, de MARGENS MÁXIMAS para cada segmento. Assim, por dedução sucessiva, à partir do preço final representativo da realidade, excluídas as promoções de aniversário da rede varejista, se concluiria a participação dos distribuidores, da indústria e, finalmente do PRODUTOR. Assim, o mercado ditaria os valores praticados, sem que os segmentos continuassem se "degladiando" tanto quanto na atualidade, em que cada um procure a mais alta remuneração, infelizmente, em prejuízo dos produtores que, pela característica de pulverização, perdem poder de negociação.
Daniel Brum de Cerqueira Leite Ribeiro
DANIEL BRUM DE CERQUEIRA LEITE RIBEIRO

PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL - INDÚSTRIA DOS LACTICÍNIOS

EM 13/01/2025

O contrato é desejado e temido para ambos os lados: se a tendência é de alta, o laticínio deseja o travamento de preço, já o produtor sente a "perda", ou falta de ganho.
Quando a curva se inverte, os sentimentos trocam de posição entre eles.
Com produtores e laticínios sempre focando no curto prazo, temos o reflexo de quebras de contrato tão recorrentes.

Não é novidade para ninguém que o mercado interno está cada vez mais influenciado pelo preços internacionais, inclusive com alguns laticínios já comparando os preços do leite brasileiro em dólar.
Eu penso que, num futuro não muito distante, nossos preços serão equiparados ao mercado internacional + basis, assim como na soja, milho etc.

Se a tendência se concretizar, será que não conseguiríamos aproveitar os instrumentos já existentes no mercado financeiro, como operações de hedge e seguros, para diminuir essa volatilidade?
Se sim, os valores comercializados no leilão GDT, por exemplo, poderiam ser utilizados para lastrear o preço do leite de produtores brasileiros?

Um abraço!
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Oi Daniel, obrigado pelo comentário. A CNA está trabalhando no sentido de desenvolver mercados futuros para o leite. Mas entendo que são ferramentas distintas. O contrato a preço baseado na média do ano anterior + inflação prevista seria uma alternativa mais fácil de se fazer, embora, como você mencionou, envolve se desprender dos altos e baixos que ocorrem no mercado. Se determinado produtor ou indústria preferirem atuar no risco, é uma decisão deles. Sem dúvida o contrato a preço conhecido funciona para quem prefere ter segurança e previsibilidade, sabendo que os altos e baixos se refletirão somente nas médias do período seguinte. É uma mudança de mindset, sem dúvida.
Sérgio Ely
SÉRGIO ELY

LAJEADO - RIO GRANDE DO SUL

EM 12/01/2025

Excelente material. Que a cadeia se torne cada vez mais profissional e demonstre maturidade para ao menos testar ferramentas sugeridas como a deste artigo.
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Obrigado Sérgio!
Osmar Redin
OSMAR REDIN

PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 13/01/2025

Parabéns Marcelo pelo artigo. Muito esclarecedor e provoca uma bela reflexão. Eu só acrescentaria na proposta uma trava para subida ou descida brusca no preço de mercado. Por exemplo: Se o preço no mercado subir ou descer além de 10% teria uma cláusula de negociação.
Atenciosamente.
Redin.
Marcelo Pereira de Carvalho
MARCELO PEREIRA DE CARVALHO

PIRACICABA - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 13/01/2025

Obrigado Redin. Essa é uma provocação inicial, e certamente há ajustes a se fazer. A cláusula de negociação para mudanças extremas é uma possibilidade. Mas, de qualquer forma, mudanças de preços que ocorrem em um determinado ano, irão se refletir no ano seguinte, porém diluídas nas médias.
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