Entre as características relacionadas com a qualidade do leite, destaca-se o padrão microbiológico, que pode ser um bom indicativo da saúde da glândula mamária do rebanho e das condições gerais de manejo e higiene adotados na fazenda. Primeiramente, podemos apontar que os principais microrganismos envolvidos com a contaminação do leite são as bactérias.
Podemos classificar as bactérias em três categorias distintas, segundo a faixa de temperatura ótima para seu crescimento: bactérias psicrófilas, mesófilas e termófilas. A faixa ótima de crescimento das psicrófilas encontra-se entre 0ºC e 15ºC; das mesófilas, entre 20ºC e 40ºC; das termófilas entre, 44ºC e 55ºC. Além dessas, duas outras categorias de microrganismos são importantes: as bactérias psicrotróficas e as termodúricas. As psicrotróficas, por definição, são aquelas capazes de se multiplicar em baixas temperaturas (≤ 7ºC), independente de sua temperatura ótima de crescimento. Já as termodúricas correspondem ao grupo de bactérias capazes de resistir ao processo térmico de pasteurização. Essa classificação tem grande importância prática, sendo fundamental para compreendermos as causas e as potenciais soluções para os problemas de qualidade do leite.
A contaminação do leite por bactérias psicrotróficas é considerada o fator mais crítico que influencia a manutenção da qualidade do leite refrigerado, sendo o gênero Pseudomonas, o predominante no leite armazenado a 4ºC por mais de 3 dias. Microrganismos psicrotróficos estão amplamente distribuídos na natureza, podendo ser encontrados na água, no solo, nas plantas e nos animais.
Desta forma, o contato do leite com essas fontes e as deficiências nos procedimentos de higiene pode levar à contaminação pelos psicrotróficos. As principais fontes de psicrotróficos do leite durante a sua produção são as superfícies dos tetos e o equipamento de ordenha. Bactérias psicrotróficas presentes no leite desenvolvem uma série de atividades metabólicas relacionadas ao seu crescimento e à manutenção que leva tanto à fermentação de carboidratos como à degradação de proteínas (proteases) e lipídeos (lípases).
Em estudos recentes, onde foram determinadas contagem de bactérias psicrotróficas e atividade proteolítica de amostras de leite cru refrigerado obtido de diferentes laticínios, nos quais as contagens médias foram entre 10.000.000 e 31.600.000 (UFC/ml), os valores médios de atividade proteolítica variaram entre 3 e 12 U/mL (Tabela 1).
Observou-se grande variabilidade na atividade proteolítica, mesmo entre amostras com elevadas contagens. A comparação entre a atividade proteolítica detectada em amostras de leite cru indicou que existem diferenças significativas entre os diferentes laticínios, mostrando que há uma grande variação na qualidade do leite adquirido e da sua potencial utilização na fabricação dos derivados lácteos, uma vez que, alguns laticínios se preocupam mais com a qualidade da matéria prima que utilizam para a fabricação de seus produtos e subprodutos.
Tabela 1. Valores médios de contagens de bactérias psicrotróficas e atividade proteolítica em leite cru refrigerado obtido de dois laticínios do Estado do Rio Grande do Sul.

Fonte: NORNBERG, et al., 2009.
As bactérias psicrotróficas, por si não representam o principal problema para indústria, pois são eliminadas pelo tratamento térmico, entretanto as enzimas produzidas e secretadas por estes microrganismos apresentam efeitos deteriorantes. Estas enzimas são muito estáveis ao calor e resistentes ao processo térmico convencional usado no leite. Uma ampla gama de problemas de qualidade de produtos lácteos pode estar associada à ação de proteases e lípases de origem microbiana, como alteração de sabor e odor do leite, perda de consistência na formação do coágulo para fabricação de queijo e gelatinização do leite UHT.
Pesquisadores isolaram bactérias psicrotróficas de leite cru refrigerado de uma unidade de processamento no Sul do Brasil, e obtiveram contagens de bactérias psicrotróficas entre 79.000 a 63.000.000 (UFC/ml) de amostras coletadas no caminhão, e entre 199.000 e 15.800.000 (UFC/ml) em amostras coletadas no silo de armazenamento de leite. Entre as bactérias isoladas, 90% foram Gram-negativas (Tabela 2), e as cepas de proteases selecionadas foram resistentes aos tratamentos convencionais de calor e causaram coagulação do leite UHT, após 5 dias de armazenamento em temperatura ambiente.
Tabela 2. Microrganismos Psicrotróficos isolados de leite coletado no Sul do Brasil.

O armazenamento do leite cru sob refrigeração possibilita a redução de custos operacionais de produção e evita perdas dessa matéria-prima pela atividade acidificante de bactérias mesofílicas. Entretanto, o armazenamento por períodos prolongados e a posterior coleta e transporte do produto em caminhões-tanque isotérmicos pode resultar em queda de qualidade dos produtos lácteos, devido ao crescimento e à atividade enzimática de bactérias psicrotróficas que apresenta capacidade de coagular a proteína do leite.
A Instrução Normativa 51 estabeleceu que o leite deve ser refrigerado e armazenado na propriedade rural, aumentando a importância prática e industrial desse grupo de bactérias. Com a substituição do leite cru tipo C pelo leite cru refrigerado, o qual deve ser resfriado na propriedade e pode ter até 750.000 UFC/ml (regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste) no momento de seu recebimento na usina, a preocupação sobre o grupo dos psicrotróficos aumenta ainda mais no mercado de leite. Isto sugere que a refrigeração do leite cru, até a chegada na unidade de processamento, prevista na legislação de no máximo 7ºC, pode não ser suficiente para a manutenção da qualidade higiênica da matéria prima, dependendo de quanto tempo que esse leite fique submetido a essa condição.
Isso nos mostra a grande importância nas condições de higiene do ordenhador, dos equipamentos de ordenha, do ambiente; na sanidade dos animais; no tempo de armazenamento e transporte adequando do leite até a indústria.
Fonte:
NÖRNBERG, M. F. B. L.; TONDO, E. C.; BRANDELLI, A. Bactérias psicrotróficas e atividade proteolítica no leite cru refrigerado. Acta Scientiae Veterinariae. 37(2): 157-163, 2009.
NORNBERG, M. F. B. L.; FRIEDRICH, R. S. C.; WEISS, R. D. N.; TONDO, E. C.; BRANDELLI, A. Proteolytic activity among psychrotrophic bacteria isolated from refrigerated raw milk. International Journal of Dairy Technology, 63(1): 41-46, 2009.