Ela voltou! Sim, a inflação voltou e com destaque para os preços dos alimentos, que estão impactando as famílias mais pobres. Mas, somente as mais pobres das cidades?
O que levou a inflação a patamares de dois dígitos anuais foi o desarranjo das cadeias produtivas globais, impactadas pela descontinuidade na produção e no transporte internacional. Mas, isso não foi o único motivo.
Os governos fizeram necessários rees financeiros emergenciais às famílias vulneráveis em todo o mundo e, transferências de rendas tendem a estimular inflação, meses depois. Além disso, a guerra na Ucrânia tomou dimensão global e ainda é imprevisível o seu fim. Portanto, sem dar sinais de que irá embora tão cedo, o clima é muito aconchegante para a inflação continuar entre nós, se alimentando da renda das famílias e inibindo a geração da riqueza nacional.
Neste período de pós-pandemia o mundo ficou mais ambíguo. De um lado, o conceito ESG (sustentabilidade baseada no tripé ambiental, social e da transparência na gestão), criado e adormecido desde os anos noventa, entrou em erupção abrupta em 2020, e foi introduzido rapidamente nas agendas das empresas e nações. Até a China se curvou à agenda da economia limpa e colocou a questão ambiental no centro de sua nova programação econômico-social. Do contrário, que empresa vai querer comprar seus insumos e produtos na próxima década?
Mas, surpreendentemente, nestes tempos de ESG, as empresas da Nova Economia estão desacelerando o crescimento, reduzindo investimentos e contratações, como é o caso das bigtechs (Google, Amazon e Facebook) e dos unicórnios, ou seja, as startups que ultraaram o valor de mercado de US$ 1 bilhão. Isso, em contraponto ao momento em que ocorre vigorosa valorização das empresas da Velha Economia, aquelas do segmento de commodities, consideradas produtoras clássicas de economia suja. Tempos confusos...
O fato é que energia baseada em petróleo, os minerais e os alimentos estão caros. E, neste ambiente, cresce a pressão para que medidas sejam adotadas visando reduzir o impacto negativo da inflação no bolso do consumidor – o órgão mais sensível do corpo humano. Afinal, os habitantes das cidades têm um poder imenso de fazer as suas dores serem ouvidas.
Leite é um produto de oferta sazonal no Brasil, com períodos claros de safra e entressafra, e a demanda também costuma apresentar fortes oscilações ao longo do ano, o que resulta em um setor com preços tradicionalmente voláteis. Isso coloca o leite na mira de governantes e jornalistas permanentemente, pois os momentos em que produtores reclamam de preços baixos se alternam aos momentos em que consumidores reclamam de preços altos. Portanto, a sensação é que leite é problema todo dia, o ano todo.
No mês de abril ado a inflação anual oficial brasileira, medida pelo IPCA, atingiu 12,13%, e o grupo leite e derivados ou a ser destaque em toda a mídia e apontado como um dos vilões da inflação, por ter registrado um crescimento de preços de 5,5%, que foi mais do que o dobro do registrado pelo grupo Alimentação (2,1%) e cinco vezes o IPCA do mês (1,1%).
Será que o leite é realmente o vilão da inflação? Ou será o mocinho?
A Figura 1 mostra o comportamento dos preços de itens essenciais à mesa do brasileiro, desde o início da pandemia no Brasil. Considerando-se os dados do IBGE, de abril/2020 a abril/2022, o grupo Alimentação acumulou uma inflação de 31,2%, puxada pelo Óleo de Soja (145,3%) e pelo Café Moído (84,5%). Coube ao Pão Francês (28,9%), Macarrão (25,0%) e aos Lácteos (24,0%), reduzir o custo da alimentação básica na mesa da família brasileira.
Figura 1. Variação de preços do grupo Alimentação e de alimentos selecionados, durante a pandemia (abri/2020 a abr/22), expressos em números índices (mar/2020=100)
Fonte: Cileite/Embrapa com base no IPCA/IBGE
A Figura 2 mostra o comportamento de preços dos alimentos à base de proteína animal mais comumente consumidos pelo brasileiro, e se evidencia a importância que o grupo Leite e Derivados assumiu para segurar o custo de vida nestes 24 meses de pandemia, em que a inflação recrudesceu.
Carnes (42,6%), Frango (41,7%) e Ovo de Galinha (35,7%) puxaram para cima o custo da Alimentação (31,2%), ao contrário de Leite e Derivados, que contribuiu para a redução da taxa acumulada de inflação dos alimentos, ao apresentar variação de preços de 24,0% na mesa do consumidor.
Figura 2. Variação de preços do grupo Alimentação e de alimentos à base de proteína animal, durante a pandemia (abri/2020 a abr/22), expressos em números índices (mar/2020=100)
Fonte: Cileite/Embrapa com base no IPCA/IBGE
A Figura 3 apresenta o comportamento de três preços de leite, em mercados diferentes. O gráfico denominado Campo retrata o comportamento do ILeite/Embrapa, que mede a variação dos custos de produção de leite. Portanto, retrata a inflação da produção de leite.
O gráfico denominado Cidade reproduz o comportamento dos preços do grupo Leite e Derivados do IPCA. Portanto, reproduz a inflação dos lácteos para o consumidor. Já a trajetória Mundo reproduz o comportamento dos preços do Leite em Pó Integral no mercado internacional, ou a inflação desta commodity no exterior.
O processo inflacionário está generalizado no mundo. Mas, atinge as pessoas em diferentes níveis e proporções. A maior demanda de leite no mercado internacional vem de países subdesenvolvidos, de renda per capita baixa.
Pois, conforme Figura 3, para adquirir Leite em Pó no mercado internacional, estes países conviveram com uma inflação de 52,1% em 24 meses. Isso é mais que o dobro da inflação dos lácteos na mesa do consumidor brasileiro (24,0%). Portanto, se o Brasil tivesse adotado os preços internacionais no mercado interno, o consumidor brasileiro teria sofrido um impacto inflacionário de grande intensidade e magnitude, vindo dos lácteos.
Além disso, a Figura 3 mostra que os preços internacionais (Mundo) foram mais instáveis que os preços praticados internamente (Cidade). Em Dólar, a cotação da tonelada do Leite em Pó Integral oscilou de US$ 1938 a US$ 5319, em apenas 24 meses. O resultado esperado seria o contrário, ou seja, os preços internacionais deveriam ser menos voláteis que os preços praticados no mercado nacional. Portanto, mais uma contribuição do setor de Leite e Derivados nacional.
A figura 3 também mostra que a inflação da produção (Campo) e do consumo (Cidade) tiveram comportamento semelhante de abril a agosto/2020. A partir daí, a inflação do leite na produção se acelerou muito mais que a inflação do leite para o consumidor e chegou a 62,3%. Portanto, ficou muito mais caro produzir e processar leite que consumir leite no Brasil, nestes 24 meses de pandemia.
Figura 3. Variação de preços no custo de produção de leite (Campo), no preço de leite e derivados no varejo (Cidade) e preço do Leite em Pó no mercado internacional, durante a pandemia (abri/2020 a abr/22), expressos em números índices (mar/2020=100)
Fonte: Cileite/Embrapa com base no ILeite/Embrapa, IPCA/IBGE e Global Dairy trade.
Esta análise do comportamento dos preços durante os 24 meses de pandemia mostra que o conjunto Leite e Derivados contribuiu para reduzir a escalada inflacionária dos alimentos na mesa do consumidor brasileiro.
Os preços dos lácteos cresceram menos que produtos essenciais como Óleo de Soja e Café, bem como em relação a outros alimentos de origem animal frequentemente ingeridos pelas famílias brasileiras, como ovo e carnes de boi, frango e suínos.
Também ficou evidenciado que os preços internos foram mais estáveis que os preços internacionais, mesmo com a forte oscilação do Dólar frente ao Real. Além disso, ficou mais caro produzir e processar leite e seus derivados que consumi-los. Isso se traduz em transferência de renda do setor lácteo (produção e indústria) para o setor urbano (consumidores). Como a maioria dos produtores e laticinistas tem renda compatível com as classes C, D e E, a contribuição do setor lácteo para a redução da inflação de alimentos nacional ajudou a empobrecer este segmento da sociedade brasileira.
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*Fonte da foto da matéria: Freepik