riofagos-podem-ser-usados-a-favor-dos-laticinios-231817/" />

Como os bacteriófagos podem ser usados a favor dos laticínios?

Os fagos que se multiplicam pelo ciclo lítico têm sido considerados problemas para a indústria de laticínios durante décadas. Mas, eles também pode ser aliados?

Publicado por: vários autores

Publicado em: - 9 minutos de leitura

Ícone para ver comentários 0
Ícone para curtir artigo 14

Bacteriófagos (fagos) são vírus que infectam exclusivamente as bactérias e estão amplamente distribuídos na natureza. Os fagos são considerados parasitas intracelulares obrigatórios porque dependem de uma célula bacteriana hospedeira para se multiplicarem, por meio dos ciclos lítico, crônico ou lisogênico (Figura 1) (Hobbs; Abedon, 2016).

Todos os processos de infecção se iniciam com o reconhecimento da célula bacteriana hospedeira pelo fago e a injeção do material genético viral no citoplasma. No ciclo lítico, o material genético viral utiliza a maquinaria de replicação do DNA e de síntese de proteínas da célula bacteriana hospedeira para produzir cópias das partículas virais, que serão liberadas por meio de rompimento da célula e inativação da bactéria hospedeira.

No ciclo crônico, as partículas virais produzidas são liberadas sem ocorrer a lise da célula da bactéria. No ciclo lisogênico, o material genético viral entra no citoplasma e integra-se ao genoma da bactéria hospedeira, que a a replicá-lo junto com o genoma da bactéria a cada nova geração. O material genético do fago quando está incorporado ao genoma da bactéria é denominado profago e não produz novas partículas virais.

Entretanto, estímulos ambientais podem ativar os profagos e iniciar novos ciclos líticos ou crônicos. Os fagos apresentam grande diversidade genética e a classificação taxonômica desses vírus é organizada e anualmente atualizada pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus – ICTV.

 

Figura 1. Etapas dos ciclos de infecção de bacteriófagos (lítico, lisogênico e crônico).

bacteriofagos laticinios

 

 

Os fagos que se multiplicam pelo ciclo lítico têm sido considerados problemas para a indústria de laticínios durante décadas, principalmente devido a sua habilidade de infectar e inibir o crescimento de bactérias láticas de culturas starter (mistura específica de microrganismos fermentativos) e, consequentemente, interferir nos processos de fermentação (O’Sullivan et al., 2019).

O potencial destrutivo desses fagos afeta principalmente a fabricação de leites fermentados e alguns tipos de queijo como muçarela, que dependem do crescimento das culturas starter para produção de ácido lático, abaixamento de pH e modificação da estrutura proteica.

Dependendo da sensibilidade das culturas starter à infecção pelos fagos, pode ocorrer o atraso ou a paralisação completa da fermentação, a geração de produtos com pH acima do normal, além de falhas na qualidade e segurança, culminando em perdas financeiras (Murphy et al., 2017).

As principais fontes de contaminação pelos fagos na indústria de laticínios são o leite cru, o soro de leite e as águas residuais, e a partir dessas eles podem se espalhar por toda a planta produtiva (Briggiler Marcó; Mercanti, 2021).

O controle do problema envolve a aplicação de rigorosos protocolos de higienização, rotação das culturas starter e a seleção ou indução de mecanismos de resistência nas bactérias láticas (Pujato et al., 2019).

Por outro lado, os fagos podem ser importantes aliados da indústria de laticínios, pois têm sido aplicados em diferentes etapas da cadeia produtiva de alimentos no controle de bactérias patogênicas e deteriorantes.

Os exemplos de aplicações são diversos, incluindo a fagoterapia em animais no tratamento de zoonoses, a prevenção de pragas agrícolas bacterianas, o biocontrole em alimentos processados, a biosanitização de superfícies, e a biopreservação em alimentos embalados e distribuídos para o mercado consumidor (Kuek et al., 2022).

Na cadeia produtiva de leite e derivados, os fagos têm sido aplicados principalmente na eliminação de bactérias patogênicas em queijos, leite fermentado e leite fluido (Tabela 1). Listeria monocytogenes, Salmonella spp., Cronobacter sakazakii, Staphylococcus aureus e estirpes patogênicas de Escherichia coli são as bactérias mais estudadas em matrizes lácteas.

Nos últimos anos, uma maior atenção também tem sido dada à utilização de fagos no controle de bactérias deteriorantes, principalmente do gênero Pseudomonas. A eficiência de redução da carga bacteriana é influenciada por vários fatores, incluindo a matriz láctea (estrutura, pH e composição), carga bacteriana, tipo e concentração de fagos e condições de temperatura e tempo aplicação (García-Anaya et al., 2020).

Tabela 1. Exemplos de aplicações de bacteriófagos na cadeia produtiva de leite e derivados.

bacteriofagos laticinios

 

Grande número de empresas em vários países tem produzido e comercializado produtos à base de fagos para utilização no biocontrole, descontaminação e detecção de bactérias em várias cadeias produtivas de alimentos, incluindo leite e derivados. AgriphageTM (OmniLytics Inc. - Utah, USA), ListShieldTM, SalmoFreshTM e EcoShieldTM (Intralytix Inc. - Maryland, USA), Listex P100 TM (EBI Food Safety - Wageningen, the Netherlands), BioTector (CJ CheilJedang - Seoul, South Korea) são alguns exemplos de produtos à base de fagos que são comercializados e reconhecidos como seguros, sendo aprovados pelos órgãos regulamentadores nos seus respectivos países de origem (Endersen et al., 2014).

Continua depois da publicidade

No Brasil, a regulamentação e a aplicação de fagos em processos produtivos de alimentos ainda são incipientes, mas muitos grupos de pesquisa têm se dedicado ao tema e comprovado a eficiência desses agentes no controle bacteriano.

Vários fatores têm sido apontados como vantagens na aplicação de fagos como agentes de controle de patógenos e deteriorantes. Entre esses, destacam-se a especificidade para a bactéria alvo, a capacidade de autorreplicação, a capacidade de penetração em biofilmes e a inalteração nas características sensoriais do alimento (O’Sullivan et al., 2019). Além disso, os fagos têm potencial para aplicação na produção de alimentos orgânicos e na substituição a compostos químicos, pois são considerados agentes naturais e ambientalmente seguros (Kuek; Mclean; Palombo, 2022).

Entretanto, alguns desafios ainda precisam ser vencidos para aumentar o potencialmente de utilização dos fagos, incluindo a inativação dos fagos durante o processamento e/ou armazenamento dos alimentos, mecanismos de resistência das bactérias alvo, estabilidade das suspensões contendo fagos e o preconceito dos consumidores em relação a produtos que contenham “vírus” (García-Anaya et al., 2020).

As enzimas produzidas pelos fagos no ciclo lítico são a chave para a destruição das células bacterianas no processo de infecção e também têm sido objeto de estudo e aplicação biotecnológica. A maioria dessas enzimas atua desintegrando a parede celular da bactéria alvo, na etapa de lise celular, para liberar novas partículas virais (Grabowski et al., 2021).

Essas enzimas têm sido aplicadas isoladas ou em sinergismo com outros compostos antimicrobianos para eliminação de L. monocytogenes, S. aureus, Clostridium perfringens em leite e queijos (Cho et al., 2021; Guo et al., 2016; Ibarra-Sánchez et al., 2018; Verbree et al., 2017).

Entretanto, assim como os fagos, algumas limitações precisam ser superadas, como a estabilidade das enzimas aos fatores intrínsecos do alimento e às condições de processamento, bem como, sua limitada ação sobre bactérias Gram-negativas (Grabowski et al., 2021).

 

Considerações finais

A aplicação de fagos é uma promissora alternativa no controle de bactérias nas cadeias produtivas de alimentos e atende aos critérios de sustentabilidade, redução do uso de antibióticos e aditivos químicos. Os obstáculos de aplicação dessa tecnologia em escala industrial têm sido superados com a ampliação das pesquisas na área e utilização da engenharia genética para desenvolver fagos programáveis para executarem funções específicas (Huss; Raman, 2020). Além disso, o reconhecimento e aprovação de órgãos regulamentadores e conscientização das indústrias e consumidores têm auxiliado na difusão dessa tecnologia.

 

Agradecimento

O autor Matheus Braga Mendes agradece ao Instituto Sua Ciência e Grupo Inovaleite pelo apoio financeiro (bolsa Iniciação Tecnológica Industrial).

 

 

Referências

Briggiler Marcó, M.; Mercanti, D, J. Bacteriophages in dairy plants. 1st ed. [S. l.]: Elsevier Inc., 2021. v. 97, . DOI 10.1016/bs.afnr.2021.02.015. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/bs.afnr.2021.02.015.

Cho, J. H. et al. Development of an endolysin enzyme and its cell wall–binding domain protein and their applications for biocontrol and rapid detection of Clostridium perfringens in food. Food Chemistry, v. 345, p. 128562, 2021. DOI 10.1016/j.foodchem.2020.128562. Available at: https://doi.org/10.1016/j.foodchem.2020.128562.

El Haddad, L. et al. Efficacy of two Staphylococcus aureus phage cocktails in cheese production. International Journal of Food Microbiology, v. 217, p. 7–13, 2016. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2015.10.001. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2015.10.001.

Endersen, L. et al. Investigating the biocontrol and anti-biofilm potential of a three phage cocktail against Cronobacter sakazakii in different brands of infant formula. International Journal of Food Microbiology, v. 253, n. January, p. 1–11, 2017. https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2017.04.009.

Endersen, L. et al. Phage therapy in the food industry. Annual Review of Food Science and Technology, v. 5, n. 1, p. 327–349, 2014. https://doi.org/10.1146/annurev-food-030713-092415.

García-Anaya, M. C. et al.  Phages as biocontrol agents in dairy products. Trends in Food Science and Technology, vo. 95, n. October 2019, p. 10–20, 2020. https://doi.org/10.1016/j.tifs.2019.10.006.

García, P. et al. Prevalence of bacteriophages infecting Staphylococcus aureus in dairy samples and their potential as biocontrol agents. Journal of Dairy Science, v. 92, n. 7, p. 3019–3026, 2009. DOI 10.3168/jds.2008-1744. Available at: http://dx.doi.org/10.3168/jds.2008-1744.

Grabowski, L. et al. Bacteriophage-encoded enzymes destroying bacterial cell membranes and walls, and their potential use as antimicrobial agents. Microbiological Research, v. 248, n. March, 2021. https://doi.org/10.1016/j.micres.2021.126746.

Guenther, S.; Loessner, M. J.  Bacteriophage biocontrol of Listeria monocytogenes on soft ripened white mold and red-smear cheeses . Bacteriophage, v. 1, n. 2, p. 94–100, 2011. https://doi.org/10.4161/bact.1.2.15662.

Guo, T. et al. The potential of the endolysin Lysdb from Lactobacillus delbrueckii phage for combating Staphylococcus aureus during cheese manufacture from raw milk. Applied Microbiology and Biotechnology, v. 100, n. 8, p. 3545–3554, 2016. https://doi.org/10.1007/s00253-015-7185-x.

Hobbs, Z.; Abedon, S. T. Diversity of phage infection types and associated terminology: the problem with ‘Lytic or lysogenic.’ FEMS Microbiology Letters, v. 363, n. 7, p. 1–8, 2016. https://doi.org/10.1093/FEMSLE/FNW047.

Huss, P.; Raman, S. Engineered bacteriophages as programmable biocontrol agents. Current Opinion in Biotechnology, v. 61, p. 116–121, 2020. DOI 10.1016/j.copbio.2019.11.013. Available at: https://doi.org/10.1016/j.copbio.2019.11.013.

Ibarra-Sánchez, L. A. et al. Antimicrobial behavior of phage endolysin PlyP100 and its synergy with nisin to control Listeria monocytogenes in Queso Fresco. Food Microbiology, v. 72, p. 128–134, 2018. https://doi.org/10.1016/j.fm.2017.11.013.

Kuek, M. et al. Application of bacteriophages in food production and their potential as biocontrol agents in the organic farming industry. Biological Control, v. 165, n. August 2021, p. 104817, 2022. DOI 10.1016/j.biocontrol.2021.104817. Available at: https://doi.org/10.1016/j.biocontrol.2021.104817.

Mclean, S. K. et al. Phage inhibition of Escherichia coli in ultrahigh-temperature-treated and raw milk. Foodborne Pathogens and Disease, v. 10, n. 11, p. 956–962, 2013. https://doi.org/10.1089/fpd.2012.1473.

Modi, R. et al. Effect of phage on survival of Salmonella Enteritidis during manufacture and storage of Cheddar cheese made from raw and pasteurized milk. Journal of Food Protection, v. 64, n. 7, p. 927–933, 2001. https://doi.org/10.4315/0362-028X-64.7.927.

Murphy, J. et al. Bacteriophages Infecting Lactic Acid Bacteria. Fourth Edi. [S. l.]: Elsevier Ltd, 2017. v. 1, . DOI 10.1016/B978-0-12-417012-4.00010-7. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/B978-0-12-417012-4/00010-7.

Nascimento, E.C. et al. Lytic bacteriophages UFJF_PfDIW6 and UFJF_PfSW6 prevent Pseudomonas fluorescens growth in vitro and the proteolytic-caused spoilage of raw milk during chilled storage. Food Microbiology, v. 101, n. August 2021, 2022. https://doi.org/10.1016/j.fm.2021.103892.

O’Sullivan, L. et al. Bacteriophages in Food Applications: From Foe to Friend. Annual Review of Food Science and Technology, v. 10, p. 151–172, 2019. https://doi.org/10.1146/annurev-food-032818-121747.

Perera, M. N. et al. Bacteriophage cocktail significantly reduces or eliminates Listeria monocytogenes contamination on lettuce, apples, cheese, smoked salmon and frozen foods. Food Microbiology, v. 52, p. 42–48, 2015. DOI 10.1016/j.fm.2015.06.006. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.fm.2015.06.006.

Pujato, S. A. et al. Bacteriophages on dairy foods. Journal of Applied Microbiology, v. 126, n. 1, p. 14–30, 2019. https://doi.org/10.1111/jam.14062.

Rodríguez-Rubio, L. et al. Listeriaphages and coagulin C23 act synergistically to kill Listeria monocytogenes in milk under refrigeration conditions. International Journal of Food Microbiology, v. 205, p. 68–72, 2015. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2015.04.007. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2015.04.007.

Silva, E. N. G. et al. Control of Listeria monocytogenes growth in soft cheeses by bacteriophage P100. Brazilian Journal of Microbiology, v. 45, n. 1, p. 11–16, 2014. https://doi.org/10.1590/S1517-83822014000100003.

Soni, K. A. et al. Reduction of Listeria monocytogenes in queso fresco cheese by a combination of listericidal and listeriostatic GRAS antimicrobials. International Journal of Food Microbiology, v. 155, n. 1–2, p. 82–88, 2012. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2012.01.010. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2012.01.010.

Tanaka, C. et al. A lytic bacteriophage for controlling Pseudomonas lactis in raw cow’s milk. Applied and Environmental Microbiology, vol. 84, no. 18, p. 1–11, 2018. https://doi.org/10.1128/AEM.00111-18.

Tomat, D. et al. Phage biocontrol of enteropathogenic and shiga toxin-producing Escherichia coli during milk fermentation. Letters in Applied Microbiology, v. 57, n. 1, p. 3–10, 2013. https://doi.org/10.1111/lam.12074.

Verbree, C.T. et al. Identification of peptidoglycan hydrolase constructs with synergistic staphylolytic activity in cow’s milk. Applied and Environmental Microbiology, v. 83, n. 7, 2017. https://doi.org/10.1128/AEM.03445-16.

*Fonte da foto do artigo: Freepik

QUER AR O CONTEÚDO? É GRATUITO!

Para continuar lendo o conteúdo entre com sua conta ou cadastre-se no MilkPoint.

Tenha o a conteúdos exclusivos gratuitamente!

Ícone para ver comentários 0
Ícone para curtir artigo 14

Material escrito por:

Edilane Cristina do Nascimento

Edilane Cristina do Nascimento

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Felipe Gomes da Costa

Felipe Gomes da Costa

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Matheus Braga Mendes

Matheus Braga Mendes

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Mirian Pereira Rodarte

Mirian Pereira Rodarte

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Pedro Vidigal

Pedro Vidigal

Núcleo de Análise de Biomoléculas (NuBioMol), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Vila Gianetti, Casa 21, Campus da UFV, Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

ar todos os materiais
HUMBERTO MOREIRA HUNGARO

HUMBERTO MOREIRA HUNGARO

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais

Deixe sua opinião!

Foto do usuário

Todos os comentários são moderados pela equipe MilkPoint, e as opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos leitores. Contamos com sua colaboração.

Qual a sua dúvida hoje?

Como os bacteriófagos podem ser usados a favor dos laticínios?

Os fagos que se multiplicam pelo ciclo lítico têm sido considerados problemas para a indústria de laticínios durante décadas. Mas, eles também pode ser aliados?

Publicado por: vários autores

Publicado em: - 9 minutos de leitura

Ícone para ver comentários 0
Ícone para curtir artigo 14

Bacteriófagos (fagos) são vírus que infectam exclusivamente as bactérias e estão amplamente distribuídos na natureza. Os fagos são considerados parasitas intracelulares obrigatórios porque dependem de uma célula bacteriana hospedeira para se multiplicarem, por meio dos ciclos lítico, crônico ou lisogênico (Figura 1) (Hobbs; Abedon, 2016).

Todos os processos de infecção se iniciam com o reconhecimento da célula bacteriana hospedeira pelo fago e a injeção do material genético viral no citoplasma. No ciclo lítico, o material genético viral utiliza a maquinaria de replicação do DNA e de síntese de proteínas da célula bacteriana hospedeira para produzir cópias das partículas virais, que serão liberadas por meio de rompimento da célula e inativação da bactéria hospedeira.

No ciclo crônico, as partículas virais produzidas são liberadas sem ocorrer a lise da célula da bactéria. No ciclo lisogênico, o material genético viral entra no citoplasma e integra-se ao genoma da bactéria hospedeira, que a a replicá-lo junto com o genoma da bactéria a cada nova geração. O material genético do fago quando está incorporado ao genoma da bactéria é denominado profago e não produz novas partículas virais.

Entretanto, estímulos ambientais podem ativar os profagos e iniciar novos ciclos líticos ou crônicos. Os fagos apresentam grande diversidade genética e a classificação taxonômica desses vírus é organizada e anualmente atualizada pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus – ICTV.

 

Figura 1. Etapas dos ciclos de infecção de bacteriófagos (lítico, lisogênico e crônico).

bacteriofagos laticinios

 

 

Os fagos que se multiplicam pelo ciclo lítico têm sido considerados problemas para a indústria de laticínios durante décadas, principalmente devido a sua habilidade de infectar e inibir o crescimento de bactérias láticas de culturas starter (mistura específica de microrganismos fermentativos) e, consequentemente, interferir nos processos de fermentação (O’Sullivan et al., 2019).

O potencial destrutivo desses fagos afeta principalmente a fabricação de leites fermentados e alguns tipos de queijo como muçarela, que dependem do crescimento das culturas starter para produção de ácido lático, abaixamento de pH e modificação da estrutura proteica.

Dependendo da sensibilidade das culturas starter à infecção pelos fagos, pode ocorrer o atraso ou a paralisação completa da fermentação, a geração de produtos com pH acima do normal, além de falhas na qualidade e segurança, culminando em perdas financeiras (Murphy et al., 2017).

As principais fontes de contaminação pelos fagos na indústria de laticínios são o leite cru, o soro de leite e as águas residuais, e a partir dessas eles podem se espalhar por toda a planta produtiva (Briggiler Marcó; Mercanti, 2021).

O controle do problema envolve a aplicação de rigorosos protocolos de higienização, rotação das culturas starter e a seleção ou indução de mecanismos de resistência nas bactérias láticas (Pujato et al., 2019).

Por outro lado, os fagos podem ser importantes aliados da indústria de laticínios, pois têm sido aplicados em diferentes etapas da cadeia produtiva de alimentos no controle de bactérias patogênicas e deteriorantes.

Os exemplos de aplicações são diversos, incluindo a fagoterapia em animais no tratamento de zoonoses, a prevenção de pragas agrícolas bacterianas, o biocontrole em alimentos processados, a biosanitização de superfícies, e a biopreservação em alimentos embalados e distribuídos para o mercado consumidor (Kuek et al., 2022).

Na cadeia produtiva de leite e derivados, os fagos têm sido aplicados principalmente na eliminação de bactérias patogênicas em queijos, leite fermentado e leite fluido (Tabela 1). Listeria monocytogenes, Salmonella spp., Cronobacter sakazakii, Staphylococcus aureus e estirpes patogênicas de Escherichia coli são as bactérias mais estudadas em matrizes lácteas.

Nos últimos anos, uma maior atenção também tem sido dada à utilização de fagos no controle de bactérias deteriorantes, principalmente do gênero Pseudomonas. A eficiência de redução da carga bacteriana é influenciada por vários fatores, incluindo a matriz láctea (estrutura, pH e composição), carga bacteriana, tipo e concentração de fagos e condições de temperatura e tempo aplicação (García-Anaya et al., 2020).

Tabela 1. Exemplos de aplicações de bacteriófagos na cadeia produtiva de leite e derivados.

bacteriofagos laticinios

 

Grande número de empresas em vários países tem produzido e comercializado produtos à base de fagos para utilização no biocontrole, descontaminação e detecção de bactérias em várias cadeias produtivas de alimentos, incluindo leite e derivados. AgriphageTM (OmniLytics Inc. - Utah, USA), ListShieldTM, SalmoFreshTM e EcoShieldTM (Intralytix Inc. - Maryland, USA), Listex P100 TM (EBI Food Safety - Wageningen, the Netherlands), BioTector (CJ CheilJedang - Seoul, South Korea) são alguns exemplos de produtos à base de fagos que são comercializados e reconhecidos como seguros, sendo aprovados pelos órgãos regulamentadores nos seus respectivos países de origem (Endersen et al., 2014).

Continua depois da publicidade

No Brasil, a regulamentação e a aplicação de fagos em processos produtivos de alimentos ainda são incipientes, mas muitos grupos de pesquisa têm se dedicado ao tema e comprovado a eficiência desses agentes no controle bacteriano.

Vários fatores têm sido apontados como vantagens na aplicação de fagos como agentes de controle de patógenos e deteriorantes. Entre esses, destacam-se a especificidade para a bactéria alvo, a capacidade de autorreplicação, a capacidade de penetração em biofilmes e a inalteração nas características sensoriais do alimento (O’Sullivan et al., 2019). Além disso, os fagos têm potencial para aplicação na produção de alimentos orgânicos e na substituição a compostos químicos, pois são considerados agentes naturais e ambientalmente seguros (Kuek; Mclean; Palombo, 2022).

Entretanto, alguns desafios ainda precisam ser vencidos para aumentar o potencialmente de utilização dos fagos, incluindo a inativação dos fagos durante o processamento e/ou armazenamento dos alimentos, mecanismos de resistência das bactérias alvo, estabilidade das suspensões contendo fagos e o preconceito dos consumidores em relação a produtos que contenham “vírus” (García-Anaya et al., 2020).

As enzimas produzidas pelos fagos no ciclo lítico são a chave para a destruição das células bacterianas no processo de infecção e também têm sido objeto de estudo e aplicação biotecnológica. A maioria dessas enzimas atua desintegrando a parede celular da bactéria alvo, na etapa de lise celular, para liberar novas partículas virais (Grabowski et al., 2021).

Essas enzimas têm sido aplicadas isoladas ou em sinergismo com outros compostos antimicrobianos para eliminação de L. monocytogenes, S. aureus, Clostridium perfringens em leite e queijos (Cho et al., 2021; Guo et al., 2016; Ibarra-Sánchez et al., 2018; Verbree et al., 2017).

Entretanto, assim como os fagos, algumas limitações precisam ser superadas, como a estabilidade das enzimas aos fatores intrínsecos do alimento e às condições de processamento, bem como, sua limitada ação sobre bactérias Gram-negativas (Grabowski et al., 2021).

 

Considerações finais

A aplicação de fagos é uma promissora alternativa no controle de bactérias nas cadeias produtivas de alimentos e atende aos critérios de sustentabilidade, redução do uso de antibióticos e aditivos químicos. Os obstáculos de aplicação dessa tecnologia em escala industrial têm sido superados com a ampliação das pesquisas na área e utilização da engenharia genética para desenvolver fagos programáveis para executarem funções específicas (Huss; Raman, 2020). Além disso, o reconhecimento e aprovação de órgãos regulamentadores e conscientização das indústrias e consumidores têm auxiliado na difusão dessa tecnologia.

 

Agradecimento

O autor Matheus Braga Mendes agradece ao Instituto Sua Ciência e Grupo Inovaleite pelo apoio financeiro (bolsa Iniciação Tecnológica Industrial).

 

 

Referências

Briggiler Marcó, M.; Mercanti, D, J. Bacteriophages in dairy plants. 1st ed. [S. l.]: Elsevier Inc., 2021. v. 97, . DOI 10.1016/bs.afnr.2021.02.015. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/bs.afnr.2021.02.015.

Cho, J. H. et al. Development of an endolysin enzyme and its cell wall–binding domain protein and their applications for biocontrol and rapid detection of Clostridium perfringens in food. Food Chemistry, v. 345, p. 128562, 2021. DOI 10.1016/j.foodchem.2020.128562. Available at: https://doi.org/10.1016/j.foodchem.2020.128562.

El Haddad, L. et al. Efficacy of two Staphylococcus aureus phage cocktails in cheese production. International Journal of Food Microbiology, v. 217, p. 7–13, 2016. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2015.10.001. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2015.10.001.

Endersen, L. et al. Investigating the biocontrol and anti-biofilm potential of a three phage cocktail against Cronobacter sakazakii in different brands of infant formula. International Journal of Food Microbiology, v. 253, n. January, p. 1–11, 2017. https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2017.04.009.

Endersen, L. et al. Phage therapy in the food industry. Annual Review of Food Science and Technology, v. 5, n. 1, p. 327–349, 2014. https://doi.org/10.1146/annurev-food-030713-092415.

García-Anaya, M. C. et al.  Phages as biocontrol agents in dairy products. Trends in Food Science and Technology, vo. 95, n. October 2019, p. 10–20, 2020. https://doi.org/10.1016/j.tifs.2019.10.006.

García, P. et al. Prevalence of bacteriophages infecting Staphylococcus aureus in dairy samples and their potential as biocontrol agents. Journal of Dairy Science, v. 92, n. 7, p. 3019–3026, 2009. DOI 10.3168/jds.2008-1744. Available at: http://dx.doi.org/10.3168/jds.2008-1744.

Grabowski, L. et al. Bacteriophage-encoded enzymes destroying bacterial cell membranes and walls, and their potential use as antimicrobial agents. Microbiological Research, v. 248, n. March, 2021. https://doi.org/10.1016/j.micres.2021.126746.

Guenther, S.; Loessner, M. J.  Bacteriophage biocontrol of Listeria monocytogenes on soft ripened white mold and red-smear cheeses . Bacteriophage, v. 1, n. 2, p. 94–100, 2011. https://doi.org/10.4161/bact.1.2.15662.

Guo, T. et al. The potential of the endolysin Lysdb from Lactobacillus delbrueckii phage for combating Staphylococcus aureus during cheese manufacture from raw milk. Applied Microbiology and Biotechnology, v. 100, n. 8, p. 3545–3554, 2016. https://doi.org/10.1007/s00253-015-7185-x.

Hobbs, Z.; Abedon, S. T. Diversity of phage infection types and associated terminology: the problem with ‘Lytic or lysogenic.’ FEMS Microbiology Letters, v. 363, n. 7, p. 1–8, 2016. https://doi.org/10.1093/FEMSLE/FNW047.

Huss, P.; Raman, S. Engineered bacteriophages as programmable biocontrol agents. Current Opinion in Biotechnology, v. 61, p. 116–121, 2020. DOI 10.1016/j.copbio.2019.11.013. Available at: https://doi.org/10.1016/j.copbio.2019.11.013.

Ibarra-Sánchez, L. A. et al. Antimicrobial behavior of phage endolysin PlyP100 and its synergy with nisin to control Listeria monocytogenes in Queso Fresco. Food Microbiology, v. 72, p. 128–134, 2018. https://doi.org/10.1016/j.fm.2017.11.013.

Kuek, M. et al. Application of bacteriophages in food production and their potential as biocontrol agents in the organic farming industry. Biological Control, v. 165, n. August 2021, p. 104817, 2022. DOI 10.1016/j.biocontrol.2021.104817. Available at: https://doi.org/10.1016/j.biocontrol.2021.104817.

Mclean, S. K. et al. Phage inhibition of Escherichia coli in ultrahigh-temperature-treated and raw milk. Foodborne Pathogens and Disease, v. 10, n. 11, p. 956–962, 2013. https://doi.org/10.1089/fpd.2012.1473.

Modi, R. et al. Effect of phage on survival of Salmonella Enteritidis during manufacture and storage of Cheddar cheese made from raw and pasteurized milk. Journal of Food Protection, v. 64, n. 7, p. 927–933, 2001. https://doi.org/10.4315/0362-028X-64.7.927.

Murphy, J. et al. Bacteriophages Infecting Lactic Acid Bacteria. Fourth Edi. [S. l.]: Elsevier Ltd, 2017. v. 1, . DOI 10.1016/B978-0-12-417012-4.00010-7. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/B978-0-12-417012-4/00010-7.

Nascimento, E.C. et al. Lytic bacteriophages UFJF_PfDIW6 and UFJF_PfSW6 prevent Pseudomonas fluorescens growth in vitro and the proteolytic-caused spoilage of raw milk during chilled storage. Food Microbiology, v. 101, n. August 2021, 2022. https://doi.org/10.1016/j.fm.2021.103892.

O’Sullivan, L. et al. Bacteriophages in Food Applications: From Foe to Friend. Annual Review of Food Science and Technology, v. 10, p. 151–172, 2019. https://doi.org/10.1146/annurev-food-032818-121747.

Perera, M. N. et al. Bacteriophage cocktail significantly reduces or eliminates Listeria monocytogenes contamination on lettuce, apples, cheese, smoked salmon and frozen foods. Food Microbiology, v. 52, p. 42–48, 2015. DOI 10.1016/j.fm.2015.06.006. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.fm.2015.06.006.

Pujato, S. A. et al. Bacteriophages on dairy foods. Journal of Applied Microbiology, v. 126, n. 1, p. 14–30, 2019. https://doi.org/10.1111/jam.14062.

Rodríguez-Rubio, L. et al. Listeriaphages and coagulin C23 act synergistically to kill Listeria monocytogenes in milk under refrigeration conditions. International Journal of Food Microbiology, v. 205, p. 68–72, 2015. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2015.04.007. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2015.04.007.

Silva, E. N. G. et al. Control of Listeria monocytogenes growth in soft cheeses by bacteriophage P100. Brazilian Journal of Microbiology, v. 45, n. 1, p. 11–16, 2014. https://doi.org/10.1590/S1517-83822014000100003.

Soni, K. A. et al. Reduction of Listeria monocytogenes in queso fresco cheese by a combination of listericidal and listeriostatic GRAS antimicrobials. International Journal of Food Microbiology, v. 155, n. 1–2, p. 82–88, 2012. DOI 10.1016/j.ijfoodmicro.2012.01.010. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2012.01.010.

Tanaka, C. et al. A lytic bacteriophage for controlling Pseudomonas lactis in raw cow’s milk. Applied and Environmental Microbiology, vol. 84, no. 18, p. 1–11, 2018. https://doi.org/10.1128/AEM.00111-18.

Tomat, D. et al. Phage biocontrol of enteropathogenic and shiga toxin-producing Escherichia coli during milk fermentation. Letters in Applied Microbiology, v. 57, n. 1, p. 3–10, 2013. https://doi.org/10.1111/lam.12074.

Verbree, C.T. et al. Identification of peptidoglycan hydrolase constructs with synergistic staphylolytic activity in cow’s milk. Applied and Environmental Microbiology, v. 83, n. 7, 2017. https://doi.org/10.1128/AEM.03445-16.

*Fonte da foto do artigo: Freepik

QUER AR O CONTEÚDO? É GRATUITO!

Para continuar lendo o conteúdo entre com sua conta ou cadastre-se no MilkPoint.

Tenha o a conteúdos exclusivos gratuitamente!

Ícone para ver comentários 0
Ícone para curtir artigo 14

Material escrito por:

Edilane Cristina do Nascimento

Edilane Cristina do Nascimento

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Felipe Gomes da Costa

Felipe Gomes da Costa

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Matheus Braga Mendes

Matheus Braga Mendes

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Mirian Pereira Rodarte

Mirian Pereira Rodarte

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais
Pedro Vidigal

Pedro Vidigal

Núcleo de Análise de Biomoléculas (NuBioMol), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Vila Gianetti, Casa 21, Campus da UFV, Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

ar todos os materiais
HUMBERTO MOREIRA HUNGARO

HUMBERTO MOREIRA HUNGARO

Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), R. Lourenço Kelmer s/n, Martelos, Juiz de Fora.

ar todos os materiais

Deixe sua opinião!

Foto do usuário

Todos os comentários são moderados pela equipe MilkPoint, e as opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos leitores. Contamos com sua colaboração.

Qual a sua dúvida hoje?