Nos últimos anos, os termômetros têm registrado temperaturas cada vez mais altas. O relatório do IPCC (Intergovernmental on Climate Change) prevê que a temperatura da Terra aumentará mais de 1,5 °C nas próximas décadas, entre 2030 e 2050 (IPPC, 2018).
Além disso, períodos prolongados de clima excessivamente quente, como ondas de calor, também devem aumentar em frequência, intensidade e duração. Esse cenário climático traz preocupações para a pecuária em virtude das possíveis consequências negativas que envolvem o bem-estar, a saúde e a produção dos animais. E em relação à produção de leite de qualidade, será que essas mudanças climáticas terão algum efeito? É isso que descobriremos agora!
Bem-estar animal x mudanças climáticas
Para manter a temperatura corporal constante, o organismo animal regula o equilíbrio entre a quantidade de energia na forma de calor produzida a partir do seu metabolismo (digestão, lactação, gestação) e a energia liberada do seu organismo para o ambiente. A exposição a altas temperaturas induz um desequilíbrio térmico no organismo dos animais caracterizado pela incapacidade de regular e manter constante a sua temperatura corporal.
Nessa condição, conhecida como estresse térmico, o animal não consegue dissipar efetivamente o excesso de calor absorvido do ambiente. O estresse térmico leva a diminuições da produção de leite, da fertilidade e da imunidade e aumentos da temperatura corporal, da frequência respiratória e, em casos mais severos, da mortalidade. Vacas leiteiras de alta produção, naturalmente, têm maior atividade metabólica e, portanto, manter o equilíbrio térmico sob altas temperaturas é ainda mais difícil para esses animais.
Profissionais de saúde animal consideram que o monitoramento de mudanças nos padrões comportamentais de vacas leiteiras é uma ferramenta importante para identificar problemas de saúde e bem-estar. Por exemplo, a duração e o número de períodos deitadas fornecem informações valiosas sobre como as vacas interagem com seu ambiente.
Uma vaca leiteira a, em média, de 11 a 14 horas deitada por dia em condições de termoneutralidade. À medida que a temperatura ambiente aumenta, esses animais reduzem o tempo de repouso em 30% para aumentar a área de superfície corporal para a dissipação do calor absorvido do ambiente.
Essa mudança no comportamento animal, em busca do resfriamento do seu organismo, pode aumentar o gasto de energia para se manter em pé e alterar o uso de nutrientes. Por outro lado, o organismo vai reduzir o gasto de energia com outras atividades metabólicas associadas à produção de leite, por exemplo.
Além disso, o fluxo sanguíneo para o úbere na posição de pé é mais limitado em comparação com a posição deitada, o que reduz a quantidade de absorção de nutrientes pelas glândulas mamárias contribuindo para a diminuição da produção de leite (Becker et al., 2020).
Portanto, como os esforços das fazendas e laticínios se concentram no aumento de produtividade, o estresse térmico se tornará uma preocupação cada vez mais relevante. Mudanças no ambiente, como ampliação de áreas de sombra, instalação de ventiladores e implementação de sistemas de resfriamento com água (aspersores) são exemplos de estratégias para melhorar o bem-estar do gado leiteiro (Becker et al., 2020; Vitali et al. 2020).
Saúde animal x mudanças climáticas
O monitoramento de indicadores de imunidade, como produção de citocinas, proliferação de células imunes e viabilidade celular, indica que, sob estresse térmico, o gado leiteiro apresenta menor imunidade.
A redução da resposta imune, caracterizada pelo enfraquecimento dos mecanismos de defesa contra agentes estressores, leva ao aumento do risco de doenças, como a mastite, lipidose hepática (deficiência do fígado na metabolização de gordura) e metrite (inflamação da parede uterina) (Steele, 2016).
Se considerarmos a produção de leite, a mastite é uma doença infecciosa que requer muita atenção. A mastite bovina corresponde a uma inflamação das glândulas mamárias da vaca e é um dos principais fatores responsáveis pelas perdas de leite cru nas fazendas leiteiras. Muitos patógenos podem induzir a mastite bovina, como Escherichia coli, Streptococcus spp. e Staphylococcus spp.
O Staphylococcus aureus tem sido relatado como o patógeno mais frequentemente encontrado em amostras de leite de vacas com mastite (Guzmán-Luna et al. 2022). Além de ser uma bactéria encontrada nos úberes das vacas, o S. aureus também está presente nas instalações leiteiras, nos sistemas de ordenha, material de cama, fezes e ração.
O tratamento mais comum da mastite é realizado por meio da istração de antimicrobianos (antibióticos) o que torna o leite de vacas em tratamento impróprio para o consumo humano, uma vez que, resíduos do fármaco estarão presentes no leite produzido por esses animais. Sabe-se que a ingestão inadequada de antibióticos é uma preocupação de saúde pública em razão do desenvolvimento de resistência a antimicrobianos e favorecimento do aparecimento das “superbactérias”.
Além disso, o beneficiamento desse leite pelas indústrias de laticínios acarretaria a obtenção de produtos com baixo rendimento e de baixa qualidade. Todos esses fatores justificam a necessidade de descartar o leite produzido por animais doentes.
Vale ressaltar ainda que as lesões do tecido mamário decorrentes da inflamação reduzem a eficiência das células secretoras, as responsáveis pela secreção do leite e, portanto, a mastite leva à redução do volume de leite produzido pela vaca. Dessa forma, a ocorrência de mastite está associada a importantes perdas econômicas tanto para as fazendas quanto paras as indústrias (Guzmán-Luna et al. 2022).
Em resposta à inflamação, o metabolismo do animal infectado irá produzir células de defesa (leucócitos) para combater a doença. Assim, uma das formas de monitorar a ocorrência de mastite em vacas leiteiras é proceder à contagem de células somáticas (CCS), o que corresponde ao número de leucócitos por mililitro de leite (Becker et al., 2020, Guzmán-Luna et al. 2022).
Além disso, por se tratar de uma infecção causada por microrganismos, a avaliação microbiológica da contagem padrão em placas (P) no leite também está relacionada com a mastite, dentre outros fatores, como a higiene durante a ordenha.
Os parâmetros CCS e P podem ser quantificados em amostras de leite e são utilizados como indicadores de sua qualidade. Ao longo dos últimos anos, com a implementação do Programa Nacional de Melhoria de Qualidade do Leite (PNMQL), a legislação brasileira tem alterado os valores dos limites máximos de CCS e P permitidos para leite cru com o objetivo de promover a produção de leite com qualidade cada vez melhor. Atualmente, a Instrução Normativa Nº 76 de 26 de novembro de 2018 (IN76, MAPA) estabelece os seguintes valores para leite cru de tanque individual:
- CCS máximo de 500.000 CS/mL (células por mililitro de leite);
- P máximo de 300.000 UFC/mL (unidades formadoras de colônia por mililitro de leite).
Sob estresse térmico, ou em temperaturas mais altas, o risco de mastite aumenta devido à função imunológica menos eficiente nessas condições e, também, em razão do aumento da carga de patógenos no ambiente. Estudos mostraram que o aumento de temperatura favorece a sobrevivência e multiplicação de microrganismos, como o S. aureus (Das et al. 2016).
Ao avaliar a carga de coliformes em diferentes sistemas de confinamento para produção leiteira, como free-stall e tie stall, foi observado um aumento na contagem de coliformes nas camas em meses mais quentes.
Essa condição demonstrou que o aumento da taxa de infecção intramamária durante o verão estaria relacionado com o contato das extremidades dos tetos das vacas deitadas com superfícies mais contaminadas. Resultados semelhantes já foram observados também para rebanhos leiteiros mantidos a pasto. Portanto, as mudanças climáticas podem afetar a incidência de mastite no gado leiteiro e levar a aumento das perdas de leite cru por descarte (Guzmán-Luna et al. 2022).
Desempenho reprodutivo x mudanças climáticas
É bem aceito que a seleção genética intensiva para aumento da produção de leite está associada a uma diminuição no desempenho reprodutivo de vacas leiteiras. Nutrição, nível hormonal, manejo e ambiente são fatores que interferem na fertilidade das vacas, sendo os fatores ambientais os que mais influenciam (Dash et al. 2016).
Por exemplo, a capacidade de uma vaca de exibir comportamento natural de cio é afetada negativamente quando exposta a altas temperaturas. Essa condição leva a redução do número de vacas inseminadas no momento certo e, consequentemente, diminuição da lucratividade da fazenda.
Nesse sentido, algumas mudanças de manejo têm sido adotadas, como a implementação de protocolos que facilitam o processo de inseminação artificial para reduzir a necessidade de detecção visual de cio e melhorar a taxa de prenhez dessas vacas. Além disso, períodos prolongados de estresse térmico já foram associados negativamente com desenvolvimento embrionário, sobrevivência e crescimento do feto e qualidade do colostro produzido (Becker et al., 2020, Roth e Wolfenson, 2016).
Portanto, as mudanças climáticas podem trazer consequências que estarão na contramão das melhoras dos índices de qualidade do leite pretendidas pela legislação e da produtividade desejada pelo setor leiteiro. Os produtores de leite precisam ficar atentos com o cenário climático e adotarem manejos adequados para se fortalecerem contra os desafios impostos à produção de leite de qualidade.
Referências
Das, R., L. Sailo, N. Verma, P. Bharti, J. Saikia, Imtiwati, and R. Kumar. 2016. “Impact of heat stress on health and performance of dairy animals: A review”. Vet. World 9:260–268.
Dash, S., A. Chakravarty, A. Singh, A. Upadhyay, M. Singh, and S. Yousuf. 2016. “Effect of heat stress on reproductive performances of dairy cattle and buffaloes”: A review. Vet. World 9:235–244.
Becker, C.A. ET AL. 2020. “Invited review: Physiological and behavioral effects of heat stress in dairy cows”. Journal of Dairy Science 103: 6751–70
Guzmán-Luna, Paola et al. 2022. “Quantifying Current and Future Raw Milk Losses Due to Bovine Mastitis on European Dairy Farms under Climate Change Scenarios”. Science of The Total Environment 833: 155149.
IPCC (Intergovernmental on Climate Change). 2018. “Climate Change: Special report; Summary for Policymakers”. o em Novembro, 2022. https: / / www .ipcc .ch/ site/ assets/ s/ sites/ 2/ 2019/05/ SR15 SPM version report LR .pdf.
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Instrução Normativa Nº 76 de 26 de novembro de 2018.
Roth, Z., e D. Wolfenson. 2016. “Comparing the Effects of Heat Stress and Mastitis on Ovarian Function in Lactating Cows: Basic and Applied Aspects”. Domestic Animal Endocrinology 56: S218–27.
Steele, M. 2016. “Does heat stress affect immune function in dairy cows?” Veterinary Evidence 1.
Vitali, A. et al. 2020. “Heat Load Increases the Risk of Clinical Mastitis in Dairy Cattle”. Journal of Dairy Science 103(9): 8378–87.
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