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Constituintes do leite: muito além do uso em alimentos

Os constituintes do leite podem ser utilizados na indústria de papel, tintas, têxtil, construção civil, embalagens, farmacêutica e cosmética. Saiba detalhes!

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O leite é um alimento que faz parte da alimentação humana desde os primeiros dias de vida, quando os bebês se alimentam do leite materno. À medida que as pessoas vão crescendo esse consumo vai sendo substituído pelo leite bovino e de outras espécies.

O leite é constituído por diversos componentes (Figura 1), entre eles a água, gordura, caseínas, proteínas do soro, lactose, vitaminas e sais minerais, o que o torna um alimento de grande importância nutricional e baixo custo relativo. Mas, além de ser utilizado na dieta humana, devido à sua riqueza nutricional, o leite, na forma de seus constituintes, pode ter aplicações não alimentícias.

 

Figura 1. Principais constituintes do leite.

Figura 1

Fonte: Autoras, 2022.

 

 

No nosso último artigo, abordamos a versatilidade das caseínas, dando ênfase, especialmente para as indústrias alimentícias e de suplementação nutricional. Neste artigo, iremos discutir outras formas bem diferentes para o emprego de constituintes deste sistema tão complexo e multifuncional. Vamos conhecer algumas destas aplicações?

 

Indústria de papel

As proteínas do leite representam cerca de 3,3% dos constituintes do leite, sendo que do total de proteínas, aproximadamente, 80% corresponde  às caseínas (αs1-, αs2-, β-, κ-) (WALSTRA; WOUTERS; GEURTS, 2006).

Quando expostas ao formaldeído, as micelas de caseína se transformam em um material semelhante a um plástico (TUCKER; JOHNSON, 2004). Uma das características deste material é a resistência a água, por isso, é aplicado em papéis de parede, tornando-os laváveis.

 

Indústria de tintas

Esta resistência à água e “plasticidade” da micela de caseína quando exposta ao formaldeído também é útil por conferir características adesivas ao material, podendo ser usado como aglutinante de pigmento em tintas (TUCKER; JOHNSON, 2004).

 

Indústria da construção civil

Ainda em relação à característica adesiva das caseínas quando expostas ao formaldeído, a micela de caseína foi utilizada como cola por muitos anos. A utilização comercial da caseína para cola parece ter iniciado no século XIX na Alemanha e na Suíça, e em meados do século, patentes para colas formuladas começaram a aparecer nos Estados Unidos.

Esta cola era principalmente usada na colagem de madeira. A necessidade de resistência à água em colas para madeira durante a Primeira Guerra Mundial conferiu às colas à base de caseína um alto nível de importância. No seu auge, a indústria produzia 50.000 toneladas por ano de pó de caseína. Após o período da Primeira Guerra, a cola à base de caseína ou a ser substituída por adesivos sintéticos de baixo custo (TUCKER; JOHNSON, 2004).

 

Indústria têxtil

Os têxteis são ambientes propícios tanto para a multiplicação quanto para a transmissão de microrganismos, devido à sua capacidade de reter umidade e também por serem utilizados em temperaturas que favorecem o desenvolvimento microbiano. Assim, diferentes agentes antimicrobianos e fungicidas são incorporados em materiais têxteis e suas superfícies.

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A hidrólise das caseínas gera peptídeos que apresentam atividade antibacteriana eficiente contra várias espécies, como por exemplo, Staphylococcus aureus e Klebsiella pneumonia. Além disso, como os hidrolisados de caseína são biodegradáveis e mais de 20%, em peso, dos produtos lácteos são perdidos ao longo da cadeia de produção, distribuição e consumo, a utilização dos peptídeos de caseína como agentes antibacterianos é relevante também do ponto de vista ambiental e econômico (BELKHIR et al., 2021).

Além dos hidrolisados, fibras de micela de caseína podem ser utilizadas na fabricação de tecidos, conferindo características como maciez e delicadeza ao toque, brilho, flexibilidade, boa absorção de umidade e permeabilidade ao ar, resistência ao calor, boa propriedade de solidez da cor e facilidade de tingimento do tecido (SARKAR et al., 2021).

Peptídeos de caseínas têm sido aplicados como material para acabamentos têxteis como retardadores de chama ecologicamente corretos. Tecidos de algodão, poliéster e seda mostraram maior resistência à chama e ao fluxo do calor após o tratamento com os fosfopeptídeos de caseínas (ZHANG et al., 2019).

 

 

Indústria de embalagens

As embalagens de alimentos são utilizadas para manter a qualidade dos alimentos ao inibir o contato com oxigênio, luz e umidade e garantir a segurança microbiológica. Além disso, as embalagens são essenciais para a comunicação de conteúdo, diferenciação do produto e branding.

Devido às recentes preocupações com o meio ambiente, as indústrias de embalagens estão estudando alternativas renováveis, ecologicamente corretas e biodegradáveis para substituir os materiais de embalagem à base de petróleo.

Filmes à base de proteínas do leite servem como uma barreira entre os alimentos e o ambiente, garantindo sua segurança. Enquanto a barreira de oxigênio dos filmes à base de caseína é alta, os filmes de proteína de soro de leite têm boa permeabilidade ao vapor de água e ao oxigênio. Entretanto, filmes à base de proteínas são frágeis, sendo necessária a adição de plastificantes às formulações (MALIK; ERGINKAYA; ERTEN, 2019).

 

Indústria farmacêutica e de cosméticos

A lactoferrina, presente no soro do leite, é uma glicoproteína capaz de interagir e transportar o ferro (WALSTRA; WOUTERS; GEURTS, 2006). Devido a seus efeitos antiviral, antibacteriano, antifúngico, imunodulador, anti-inflamatório, antioxidante e antitrombótico, a lactoferrina é considerada uma proteína com efeitos benéficos para a saúde humana (MANN; NDUNG’U, 2020). Por isso, a lactoferrina vem sendo proposta como um coadjuvante no tratamento de doenças virais, incluindo a Covid-19 (CAMPIONE et al., 2020; CHANG; NG; SUN, 2020; MANN; NDUNG’U, 2020).

Os produtos lácteos são frequentemente associados a uma boa saúde bucal, pois contêm altas concentrações de íons cálcio e fosfato. No leite, a caseína existe em micelas que estabilizam os íons cálcio e fosfato, assim essas micelas possuem propriedades anticariogênicas e promovem a remineralização do esmalte dos dentes  e podem ser utilizadas na formulação de cremes dentais (COCHRANE; REYNOLDS, 2009; REYNOLDS, 2022).

Um estudo foi realizado para avaliar a eficácia do creme dental contendo fosfopeptídeos de caseína na prevenção da cárie dentária em crianças na idade escolar. O estudo, realizado com 150 estudantes, comparou o efeito de três cremes dentais: um contendo 2% destes fosfopeptídeos, outro contendo 0,76% de monofluorofosfato e um creme dental placebo.

Após 24 meses de uso dos cremes dentais, foi observada uma redução significativa no aumento de cárie entre os alunos que usaram os dois primeiros grupos de creme dental, em comparação com o grupo que usou o creme dental placebo.

Não houve diferença entre os resultados obtidos para os cremes com flúor e com fosfopeptídeos de caseína, o que leva à conclusão de que os fosfopeptídeos de caseína podem ser incorporados em cremes dentais com eficácia na prevenção da cárie, especialmente em produtos destinados aos alérgicos ao flúor.

Além destes efeitos, as proteínas do leite são capazes de complexar e carrear compostos que apresentam atividade biológica de proteção contra inúmeras doenças, podendo ser utilizadas em formulações farmacêuticas. A indústria cosmética também pode utilizar destas proteínas para realizar a entrega de ativos na pele e cabelos.

Em medicamentos, a lactose atua como excipiente. Excipientes são substâncias que, combinadas com substâncias ativas, são utilizadas para formar um medicamento armazenável. Os excipientes não podem exercer qualquer efeito farmacológico e devem ser inertes em relação às substâncias ativas, além de desempenhar diferentes funções, como dar a forma adequada, melhorar a aparência e o sabor do medicamento, aumentar a biodisponibilidade da substância ativa e aumentar sua estabilidade.

A lactose, quando utilizada como excipiente, também possui propriedades de adsorção, protegendo o produto contra a absorção excessiva de umidade do ar e devido ao seu gosto doce, melhora a aceitabilidade dos medicamentos (ZDROJEWICZ; ZYSKOWSKA; WASIUK, 2018).

As micelas de caseína também são utilizadas na indústria farmacêutica como material de filme para revestimento de comprimidos (ABU DIAK et al., 2007; ELZOGHBY et al., 2011) e como nanocarreadores viáveis para entrega prolongada de fármacos, como o anti-inflamatório benzidamina (ZAHARIEV et al., 2021).

A lactose, quando fermentada por algumas bactérias, pode ser transformada em ácido lático, que pode ser utilizada pela indústria cosmética em formulações de uso tópico. O uso do ácido lático é capaz de aumentar a produção de ceramidas, lipídios que constituem a barreira da pele, melhorando a hidratação da mesma e prevenindo irritações de pele. O uso tópico de ácido lático também é capaz de proteger a pele de fotodanos e da hiperpigmentação (LODÉN; MAIBACH, 2005).

A gordura do leite é rica em ácidos graxos essenciais (linoleico e linolênico) que o corpo humano não é capaz de produzir. A deficiência desses ácidos graxos aumenta a perda de água transepidérmica, fazendo com que a pele fique com uma aparência ressecada pois estes ácidos são constituintes da barreira da pele. A gordura do leite, em formulações de uso tópico podem ajudar a constituir a barreira dérmica e também possuem ação emoliente (LODÉN; MAIBACH, 2005).

Estudos têm demonstrado que os isômeros do ácido linoleico conjugado, conhecidos como CLA, presentes no leite, apresentam efeitos antidiabéticos, de modulação do sistema imune e de redução de aterosclerose (em função da diminuição do teor de colesterol sanguíneo) (YOON et al., 2021).

Nesse sentido, é possível encontrar CLA na forma de suplemento em cápsulas. Além disso, estruturas micelares formadas pela conjugação entre CLA e lactoferrina (LF) são capazes de reduzir o estresse oxidativo e a inflamação no tecido cerebral, mostrando-se promissoras no combate à doença de Alzheimer (AGWA et al., 2020).

Realmente, o leite é um alimento riquíssimo em nutrientes e, portanto, importante na alimentação humana. Entretanto, talvez seja hora de compreendermos e valorizarmos também o potencial de seus valiosos constituintes como insumos relevantes para as mais diferentes indústrias.

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Referências

ABU DIAK, O. et al. The Manufacture and Characterization of Casein Films as Novel Tablet Coatings. Food and Bioproducts Processing, v. 85, n. 3, p. 284–290, set. 2007.

AGWA, M. M. et al. Self- assembled lactoferrin-conjugated linoleic acid micelles as an orally active targeted nanoplatform for Alzheimer’s disease. International Journal of Biological Macromolecules, v. 162, p. 246–261, 1 nov. 2020.

BELKHIR, K. et al. Antibacterial textile based on hydrolyzed milk casein. Materials, v. 14, n. 2, p. 1–14, 2021.

CAMPIONE, E. et al. Lactoferrin as potential supplementary nutraceutical agent in COVID-19 patients: in vitro and in vivo preliminary evidences. bioRxiv, 2020.

CHANG, R.; NG, T. B.; SUN, W. Z. Lactoferrin as potential preventative and adjunct treatment for COVID-19. International Journal of Antimicrobial Agents, v. 56, n. 3, 2020.

COCHRANE, N. J.; REYNOLDS, E. C. Casein phosphopeptides in oral health. [s.l.] Woodhead Publishing Limited, 2009.

ELZOGHBY, A. O.; ABO EL-FOTOH, W. S.; ELGINDY, N. A. Casein-based formulations as promising controlled release drug delivery systems. Journal of Controlled Release, v. 153, n. 3, p. 206–216, 10 ago. 2011.

LODÉN, M.; MAIBACH, H. I. Dry skin and moisturizers: Chemistry and function, second edition. 2. ed. [s.l: s.n.].

MALIK, A.; ERGINKAYA, Z.; ERTEN, H. Health and safety aspects of food processing technologies. [s.l: s.n.].

MANN, J. K.; NDUNG’U, T. The potential of lactoferrin, ovotransferrin and lysozyme as antiviral and immune-modulating agents in COVID-19. Future Virology, v. 15, n. 9, p. 609–624, set. 2020.

REYNOLDS, E. C. Fractionated Casein Ingredients—Recaldent. In: Encyclopedia of Dairy Sciences. [s.l.] Elsevier, 2022. p. 40–49.

SARKAR, M. et al. Study on the production of nano-textiles from casein using electrospinning technique. International Journal of Recent Scientific Research, v. 12, n. 08, p. 42825–42827, 2021.

TUCKER, N.; JOHNSON, M. Low Environmental Impact Polymers. 1. ed. [s.l.] Rapra Technology Limited Shawbury, 2004.

WALSTRA, P.; WOUTERS, J. T. M.; GEURTS, T. J. Dairy Science and Technology. 2. ed. [s.l.] Taylor & Francis Group, 2006.

YOON, S. Y. et al. Linoleic acid exerts antidiabetic effects by inhibiting protein tyrosine phosphatases associated with insulin resistance. Journal of Functional Foods, v. 83, p. 104532, 1 ago. 2021.

ZAHARIEV, N. et al. Casein Micelles as Nanocarriers for Benzydamine Delivery. Polymers, v. 13, n. 24, p. 4357, 13 dez. 2021.

ZDROJEWICZ, Z.; ZYSKOWSKA, K.; WASIUK, S. Lactose in drugs and lactose intolerance - Realities and myths. Pediatria i Medycyna Rodzinna, v. 14, n. 3, p. 261–266, 2018.

ZHANG, W. et al. Casein phosphopeptide-metal salts combination: A novel route for imparting the durable flame retardancy to silk. Journal of the Taiwan Institute of Chemical Engineers, v. 101, p. 1–7, 1 ago. 2019.

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Material escrito por:

Lívia Neves Santa Rosa

Lívia Neves Santa Rosa

Engenheira de Alimentos e mestranda do Laboratório de Termodinâmica Molecular Aplicada (THERMA-UFV)

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Jaqueline de Paula Rezende

Jaqueline de Paula Rezende

Profa. Dra. Jaqueline de Paula Rezende, Professora do Departamento de Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Lavras (DCA-UFLA)

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Ana Clarissa dos Santos Pires

Ana Clarissa dos Santos Pires

Profa. Dra. Ana Clarissa dos Santos Pires, Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Termodinâmica Molecular Aplicada (THERMA-UFV)

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