A manteiga é um produto lácteo de grande relevância para a indústria de laticínios, estando presente em diversas preparações culinárias em escala mundial. Ela representa um valor de mercado de aproximadamente US$30,00 bilhões e com previsão de crescimento, podendo atingir um valor de US$36,00 bilhões em 2028 (MORDOR INTELLIGENCE, 2018).
Segundo os dados mais recentes da Food and Agriculture Organization (FAO), no ano de 2021, os Estados Unidos, Nova Zelândia e Alemanha produziram quase 2 milhões de toneladas de manteiga, cerca de 39% do volume total de manteiga (oriunda de leite de vaca) consumida mundialmente, sendo os três maiores produtores mundiais. Nesse mesmo ano, o Brasil produziu o equivalente a 113.000 toneladas de manteiga, detendo então uma fatia de 2,3% de todo o volume produzido mundialmente (FAO, 2021).
Diante dos números que revelam a extensão da produção de manteiga, é importante destacar uma consequência desse processo: a liberação de um coproduto conhecido como “leitelho”. Este líquido é liberado em consequência da bateção do creme de leite durante a fabricação da manteiga, no qual ocorre a inversão de fases, do creme (óleo em água) para manteiga (água em óleo). O leitelho é amplamente encontrado nas indústrias de produtos lácteos e tem sido visto, historicamente, como um coproduto de baixo valor comercial/tecnológico. No entanto, uma compreensão mais aprofundada da composição do leitelho nos últimos, levaram a uma reavaliação desse coproduto.
Composição do leitelho
Nos últimos anos, percebeu-se a importância contida na composição do leitelho e seu poder de agregar valor na elaboração de novos produtos e até mesmo na substituição de ingredientes, sendo possível a preservação das características sensoriais originais do alimento e a diminuição do valor comercial do produto.
Sua composição se assemelha bastante à do leite desnatado, se destacando pelo alto teor de fosfolipídeos, e tendo praticamente o mesmo perfil do leite desnatado em termos de teores de lactose, proteína e minerais, se diferenciando apenas quanto ao percentual de gordura, como pode ser observado pelos dados da Tabela 1.
Tabela 1. Composições centesimais do leite desnatado e do leitelho
Constituinte |
Leite Desnatado (%) |
Leitelho (%) |
Água |
90,9 |
91,0 |
Extrato seco total |
9,1 |
9,0 |
Gordura |
< 0,5 |
0,4 – 0,7 |
Proteína |
3,4 |
3,2 |
Lactose |
4,8 |
3,9 |
Sais |
0,9 |
0,9 |
Fosfolipídeos |
0,015 – 0,020 |
0,12 – 0,18 |
Fonte: TEIXEIRA, 2013 (Adaptado).
Singularidade do leitelho
Como dito anteriormente, a obtenção do leitelho durante a fabricação da manteiga é obtida através do processo de bateção de um creme de leite. Essa agitação mecânica do sistema (creme) promove a colisão entre os glóbulos de gordura e sua posterior agregação. Contudo, como consequência dos contínuos atrito entre essas partículas, a membrana do glóbulo é danificada, sendo liberados os componentes da membrana no meio.
Os componentes da membrana do glóbulo de gordura (MGG) desempenha um papel importante nas propriedades tecnológicas do leitelho, uma vez que possuem características anfóteras, ou seja, afinidade tanto por substâncias polares quanto apolares (MASCARELLO et al., 2019). Esta membrana é composta por fosfolipídeos, lipoproteínas e outras moléculas que apresentam propriedades tecnofuncionais relevantes para a indústria, como emulsificante e formação de espuma. Além disso, os componentes presentes na MGGL exibem propriedades bioativas, contribuindo para a redução da incidência de doenças como Alzheimer e câncer. Alguns desses compostos também demonstram atividade bactericida e capacidade de supressão de patógenos gastrointestinais (BANERJEE; QAMAR, et al., 2022). Assim, o leitelho é um coproduto que apresentam propriedades nutricionais, tecnológicas e biofuncionais importante que precisam ser exploradas.
Por que aproveitar?
O leitelho é, praticamente, um “leite desnatado” (como mostrado anteriormente). Então, a pergunta correta seria: “por que não o aproveitar?”
Através de técnicas que viabilizam a disponibilidade do leitelho em várias formas, seja líquido ou em pó, é possível empregar esse coproduto em diversas formulações da indústria de alimentos, como em molhos, sorvetes, leites fermentados, para produção de bolos, queijos, entre outros. Além disso, devido à presença da fração correspondente à composição da MGG, o leitelho possui uma alta capacidade emulsificante permitindo seu uso em sistemas coloidais em substituição a aditivos artificiais.
A utilização do leitelho pela indústria possui não só um apelo tecnológico, mas também de conscientização ambiental. O descarte inadequado desse produto inclui a sua despensa em cursos d’água sem o devido tratamento. A presença de leitelho em corpos d’água pode levar a um aumento na quantidade de oxigênio necessária para degradar essa substância por meio de processos biológicos. A Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) é uma medida da quantidade de oxigênio dissolvido necessária para a decomposição de matéria orgânica por microrganismos presentes na água. Quando há um excesso de matéria orgânica, como o leitelho, nos ecossistemas aquáticos, os microrganismos aumentam o consumo de oxigênio para conseguir degradar esse excesso de matéria orgânica presente. Isso pode levar a uma diminuição do oxigênio disponível na água, o que pode ser prejudicial para a vida aquática, pois muitos organismos aquáticos dependem do oxigênio para sobreviver. Isso caracteriza um problema de poluição e degradação ambiental.
Como aproveitá-lo?
Com o foco na utilização de coprodutos para a maximização de rendimento e promoção da inovação e diversidade de produtos na indústria, além da redução da emissão de resíduos para a estação de tratamento, o leitelho vem sendo utilizado em diversos produtos na indústria de alimentos (WANI et al., 2022). Sua utilização vem sendo ampla tanto em formulações lácteas quanto em outros produtos relacionados a alimentos e à indústria farmacêutica (AUGUSTIN et al., 2014).
Na indústria de alimentos, o leitelho é muitas vezes comercializado em pó, sendo utilizado como ingrediente para substituição parcial do leite em pó, na padronização de sólidos totais em produtos como leite para fabricação de queijos, iogurtes, entre outros. Como ingrediente, podemos utilizá-lo na elaboração de formulações de sorvetes (RAMOS et al., 2021; WALUS, 2014), devido ao seu teor de fosfolipídios, que atuam como emulsificantes, importantes agentes tecnológicos na produção de sorvetes. Em muitos casos, o leitelho também é utilizado na composição de bebidas lácteas e bebidas lácteas fermentadas, mantendo as características sensoriais originais do produto e complementando de maneira parcial a composição nutricional destes produtos, contribuindo com a redução do custo de produção na indústria (ELKASHEF; MOBDY; HASSAN, et al., 2022).
Em países europeus a comercialização do leitelho é comum, sendo ele fermentado, apenas engarrafado após tratamento térmico ou geralmente utilizado como ingrediente em preparações caseiras como doces, pães, bolos entre outros produtos. No Brasil, a comercialização do leitelho em quaisquer das formas existentes, infelizmente, ainda não é algo comum.
Referências
AUGUSTIN, M. A. et al. Use of whole buttermilk for microencapsulation of omega-3 oils. Journal of Functional Foods, v. 19, p. 859–867, dez. 2015.
BANERJEE, P.; QAMAR, I. Advances in Dairy Microbial Products. Chapter 6 – Insights into the technological and nutritional aspects of lactic milk drinks: buttermilk. 1ª ed. Woodhead Publishing, 2022. p. 93-103. 2022.
ELKASHEF, H.; MOBDY, A. A.; HASSAN, A. Texture, microstructure, and antioxidant characteristics of bio-fermented milk fortified with buttermilk nano-powder. International Dairy Journal, v. 126, p. 105248, mar. 2022.
FAO. Food and Agriculture Organization. Faostat. 2021. Disponível em: https://www.fao.org/faostat/en/#rankings/countries_by_commodity o em: 31 out 2023.
JEAN, C. et al. Antimicrobial activity of buttermilk and lactoferrin peptide extracts on poultry pathogens. Journal of Dairy Research, v.83, n.4, p.497–504, 2016.
MASCARELLO, A. F. et al. Chapter 4 – Technological and biological properties of buttermilk: A minireview. Whey - Biological Properties and Alternative Uses. IntechOpen. 2019.
MORDOR INTELLIGENCE. Tamanho do mercado de manteiga e análise de participação- Relatório de pesquisa da indústria- Tendências de crescimento. Disponível em:
RAMOS, I. et al. Desenvolvimento de sorvete com adição de leitelho. Brazilian Journal of Food Technology, v. 24, p. e2020237, 2021.
TEIXEIRA, S. M. B. Utilização de Leitelho no Desenvolvimento de Bebida Láctea Probiótica. Tese (Doutorado em Ciência dos Alimentos) Universidade Federal de Lavras. Lavras, p.171, 2013.
WALUS, C. Sorvete com adição de leitelho e substituição parcial de gordura. 2014. 27 f. Trabalho de Conclusão (Tecnologia em Alimentos) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2014.
WANI, A. D. et al. A review on quality attributes and utilization of ghee residue, an under-utilized dairy by-product. Future Foods, v. 5, p. 100131, jun. 2022.