Do ponto de vista físico-químico, o leite é um sistema coloidal, no qual glóbulos de gordura e proteínas estão dispersos em uma fase contínua formada, principalmente, por lactose e sais dissolvidos em água (VALE; PIRES, 2021).
A composição média do leite é água (87%, m/m), lactose (4,6%, m/m), gordura (3,6%, m/m), proteína (3,3%, m/m) e sais (0,7%, m/m). Há diversos fatores que podem afetar a sua composição, tais como: estágio de lactação, idade, saúde, alimentação, espécie e raça do animal, estações do ano e até mesmo a temperatura do ambiente.
Embora o leite seja composto majoritariamente por água, a temperatura de congelamento da água no leite é menor do que a da água pura. Essa diferença na temperatura de congelamento ocorre devido à presença de solutos dissolvidos, como lactose e sais, na água do leite. A medição desta temperatura é realizada por meio do índice crioscópico, uma análise amplamente utilizada pelas indústrias de laticínios na recepção do leite.
O que é índice crioscópico?
O índice crioscópico ou depressão do ponto de congelamento, é uma propriedade coligativa. As propriedades coligativas são mudanças nas propriedades termodinâmicas de um solvente puro, como a água, quando se adiciona um soluto não volátil. O índice crioscópico é uma das propriedades utilizadas para fornecer informações sobre a qualidade do leite, especialmente, no que diz respeito à fraude por adição de água e/ou solutos. Segundo a Instrução Normativa n° 76 de 2018, o leite cru deve possuir índice crioscópico entre -0,530 ºH e -0,555 °H, equivalentes a -0,512 ºC e a -0,536 ºC, respectivamente (BRASIL, 2018).
Presença de solutos x temperatura de congelamento da água no leite em relação a água pura
Mas agora, precisamos entender: por que a presença de solutos influencia no ponto de congelamento da água quando ela está em solução? A depressão do ponto de congelamento da água presente no leite é diretamente influenciada pela presença de solutos porque as moléculas de soluto interagem com as moléculas de água.
A interação das moléculas de soluto com as moléculas de água diminui o potencial químico (μ) da água que pode ser definido como a variação da energia livre de Gibbs (G), quando uma quantidade infinitesimal de mols de moléculas (n) é adicionado ou removido do sistema (Equação 1).
A Figura 1 ilustra a relação entre potencial químico em função da temperatura para a água pura no estado líquido, água líquida em solução (que pode ser compreendida como a água presente no leite) e água pura no estado sólido, isto é, na forma de gelo.
Figura 1. Relação entre potencial químico (μ) e temperatura (T) da água pura (líquida e congelada) e da água líquida em solução.
Com base nas informações apresentadas na Figura 1, podemos observar alguns pontos interessantes. Por exemplo, em qualquer temperatura, o μ da água em solução é menor do que o μ da água pura, observe que a curva desloca para a esquerda, em relação ao eixo X (temperatura), e quanto mais para esquerda a curva está menor é a temperatura. Isto ocorre porque os solutos na solução criam um efeito de depressão do ponto de congelamento da água.
Outro ponto importante é que há uma determinada temperatura em que o μ da água líquida pura (Tc*) e da água líquida em solução (Tc) é igual ao μ da água sólida, demonstrando que as fases estão em equilíbrio. Além disso, podemos observar que quanto menor o μ, maior será a depressão do ponto de congelamento, levando a uma menor temperatura de congelamento da água em solução que a temperatura de congelamento da água pura (Tc < Tc*).
Para uma compreensão mais clara, vamos considerar duas amostras: uma de leite em condições normais e outra adulterada com adição de água. Seguindo os princípios previamente discutidos, é possível concluir que a água presente na amostra de leite adulterada possui um maior μ em comparação com a água presente na amostra sem adição de água, o que resulta em uma temperatura de congelamento do leite mais alta, ou seja, mais próxima de 0 °C, que é a temperatura de congelamento da água pura.
O contrário ocorre quando o leite antes adicionado de água é adulterado com a adição de reconstituintes de crioscopia, como cloretos, sacarose ou outros solutos. Esses solutos reduzem o μ da água que havia sido aumentando pela fraude por adição de água, estabelecendo um “equilíbrio” ao leite semelhante ao antes da adição de água, mascarando assim a presença da água adicionada. Esse equilíbrio resulta em uma diminuição do μ da água, levando a uma redução do ponto de congelamento em faixas de temperatura que não se aproximam de 0 ºC, como, por exemplo, temperatura inferior a -0,536 ºC. A Figura 2 ilustra a diferença do índice crioscópico da água pura, do leite e de leites adulterados com água e com reconstituintes (solutos).
Figura 2. Índice crioscópico da água pura, leite e leites adulterados.
Fonte: Autoras.
Mas a determinação do índice crioscópico não é utilizada apenas como triagem para fraudes do leite! Outra aplicação muito interessante da crioscopia do leite é para o monitoramento do processo de hidrólise da lactose. Inicialmente a crioscopia do leite é medida e a enzima lactase é adicionada ao leite. À medida que a hidrólise ocorre, o soluto lactose se converte em dois outros solutos glicose e galactose. A presença desses “novos” solutos diminui o potencial químico da água no leite e consequentemente diminui o ponto de congelamento da água presente no leite. Isto é, à medida que a hidrólise da lactose ocorre, a temperatura de congelamento do leite diminui.
Neste artigo, vimos que entender o porquê a temperatura de congelamento da água no leite é inferior à da água pura é crucial para assegurar a conformidade com os padrões de qualidade do leite. Desta forma, esta propriedade coligativa é muito útil para as indústrias de laticínios, podendo ser utilizada para a detecção de possíveis adulterações no leite, mas também para o monitoramento da hidrólise da lactose.
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Referências bibliográficas
BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Instrução Normativa nº 76, de 26 de novembro de 2018.
VALE, R. T. R.; PIRES, A. C. S. Lácteos: a beleza e a riqueza dos sistemas coloidais. MilkPoint, 30 de setembro de 2021. Disponivel em: /colunas/thermaufv/lacteos-a-beleza-e-a-riqueza-dos-sistemas-coloidais-227463/