O leite é parte integrante da dieta humana e, além da nutrição, também possui propriedades funcionais únicas aproveitadas pela indústria para diversos usos. Por ser altamente perecível, técnicas específicas são necessárias para minimizar as perdas durante o processamento e estocagem deste alimento.
Além disso, o processamento do leite é fundamental para garantir a sua segurança microbiológica. Sob esse aspecto, o leite UHT, também conhecido como leite longa vida ou leite de caixinha, se apresenta como uma atraente alternativa comercial por ser um produto de alta qualidade, que pode ser mantido a temperatura ambiente e com longo prazo de validade. Mas, afinal, o que faz com que o leite UHT dure tanto tempo?
Por que o leite de caixinha dura tanto tempo?
A vida útil e a qualidade de um produto lácteo são determinadas por um conjunto de fatores, sendo eles:
- Qualidade da matéria-prima;
- Tecnologia de processamento e embalagem aplicadas ao produto;
- Condições de armazenamento do produto durante sua vida útil.
A qualidade da matéria-prima, ou seja, o leite cru, é um fator determinante para obtenção de qualquer produto lácteo seguro, estável e com características sensoriais desejáveis. A qualidade do leite é definida por parâmetros de composição química, características físico-químicas e microbiológicas.
No caso do leite UHT, dois fatores de qualidade do leite cru são especialmente importantes: a contagem de microrganismos psicrotróficos (capazes de se multiplicar sob temperaturas de refrigeração) e a contagem de células somáticas (CCS).
Níveis elevados de células somáticas são um indicativo de que o leite foi obtido de vacas com mastite, uma reação inflamatória da glândula mamária. Leite com alta contagem de psicrotróficos ou alta CCS pode apresentar concentrações elevadas de enzimas proteolíticas resistentes ao tratamento térmico aplicado ao leite.
A proteólise promovida por essas enzimas libera peptídeos de baixo peso molecular, os quais podem conferir sabor amargo ao leite UHT. Além disso, a proteólise pode ocasionar gelificação, que é um defeito limitante à vida útil do leite UHT. Portanto, a obtenção de uma matéria-prima de boa qualidade, apesar de não ser uma garantia de obtenção de um produto de qualidade, é um primeiro o essencial.
A tecnologia de processamento do leite UHT é um diferencial em relação à sua longa vida útil. O primeiro fator do processamento a ser considerado é o tratamento térmico aplicado ao leite. O próprio termo inglês “Ultra-High Temperature” — ultra alta temperatura — mostra que, nesse tipo de processamento, o leite é submetido a temperaturas muito altas, mais especificamente, temperaturas entre 130 ºC e 150 ºC, durante 2 a 4 segundos, seguido por resfriamento a 32 ºC.
Esse tratamento térmico faz parte do processamento chamado de esterilização comercial, o qual não destrói todos os microrganismos presentes no leite, mas assegura que não haja a multiplicação de microrganismos deterioradores e nem a existência de microrganismos patogênicos, garantindo a segurança microbiológica do leite durante sua vida útil.
Outra parte essencial do processamento UHT é a embalagem do leite em condições assépticas. Após a seção de aquecimento na linha de processamento, o leite a por trocadores de calor para resfriamento, também de forma asséptica e, a partir deles, é bombeado para a câmara de envase asséptico, onde é envasado em uma embalagem quimicamente esterilizada (geralmente, com peróxido de hidrogênio quente). Um dos tipos de embalagem mais utilizados para leite UHT é a caixa cartonada de 6 camadas, cada uma com uma função específica. A Figura 1 apresenta um esquema desse tipo de embalagem.
Figura 1. Esquema de uma embalagem cartonada de 6 camadas típicas de leite UHT.
Fonte: autoras.
Na embalagem apresentada na Figura 1, as camadas da caixa e suas funções são: 1- polietileno (contato e proteção direta ao produto); 2- polietileno (para aderência das camadas); 3- alumínio (proteção contra entrada de oxigênio, odores e luz); 4- polietileno (camada para aderência); 5- papel cartão (para estabilidade e resistência da embalagem); 6- polietileno (proteção contra umidade externa).
Portanto, a embalagem do leite UHT o protege de contaminação microbiológica do meio externo, de reações químicas que envolvam oxigênio e luz, contribuindo para a manutenção de sua estabilidade ao longo de sua vida de prateleira.
A Figura 2 esquematiza a associação dos 3 fatores discutidos até aqui, que resultam em um leite UHT de qualidade e com longa vida útil.
Figura 2. Esquema da associação entre os três fatores resultantes na obtenção de um leite UHT de qualidade e com longa vida útil.
Fonte: Freepik.
Após a obtenção de um leite UHT de qualidade, este deve ser armazenado de forma adequada para garantir que sua qualidade seja mantida ao longo de toda sua vida de prateleira, assim como todo produto lácteo.
O processamento e embalagem aplicados no leite UHT permitem que este seja armazenado a temperatura ambiente, ou seja, sem necessidade de refrigeração. No entanto, o tempo e a temperatura de armazenamento são fatores importantes para a estabilidade do leite UHT.
Quanto maiores forem o tempo e a temperatura de estocagem, processos que podem afetar o sabor e a cor do leite, como lipólise, proteólise e reação de Maillard (iniciada pelo intenso tratamento térmico do leite UHT), são favorecidos, reduzindo a qualidade do leite.
É comum as pessoas, por falta de conhecimento, pensarem que o leite UHT dura muito tempo por possuir conservantes e “produtos químicos”. Porém, a legislação brasileira não permite a adição de nenhum tipo de conservante ao leite.
No entanto, a adição de estabilizantes, prevista por lei e apresentada nos rótulos, pode levar os consumidores a uma certa confusão. Os sais de monofosfato de sódio, citrato de sódio, trifosfato de sódio e difosfato de sódio são os estabilizantes mais comuns permitidos por lei e aplicados em leite UHT, com a função exclusiva de evitar ou retardar a desestabilização das caseínas em função das altas temperaturas aplicadas no tratamento térmico. Além disso, a lei estabelece limites de concentração desses aditivos a serem aplicados, garantindo a segurança de sua utilização.
Diante de tudo isso, caro leitor, você já é capaz de compreender que a longa vida do leite UHT é devido, principalmente, à qualidade da matéria-prima, ao tratamento térmico e ao processo de envase e embalagem aplicados a ele, e não à presença de conservantes. Portanto, o leite UHT deve ser visto como um alimento nutritivo, prático e seguro.
Referências
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